Jordi Savall: quando a música é só estética, acaba-se em Auschwitz

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Jordi Savall, líder do Hespèrion XXI, esteve no sábado em Santiago do Cacém, num concerto raro. Em entrevista ao Ípsilon, argumenta que "a música e a cultura" são as únicas portas que ainda podem promover o diálogo entre os povos. "Todas as outras - políticas, sociais, violentas - foram um fracasso."

Jordi Savall conta isto no "encore": ao apresentar "A la una yo naci", música sefardita, em concertos na Turquia ou na Grécia, houve espectadores a reivindicar a peça como fazendo parte da sua tradição musical. "Cada um de nós pensa que a sua música é única e isso impede-nos de ver a beleza da música dos outros", diz o maestro do Hespèrion XXI e da Capella Reial de Catalunya.

Com Pedro Estevan nas percussões, Savall protagonizou com a sua viola de gamba, um rebab e uma lira de arcco, no sábado passado, um concerto raro na Igreja Matriz de Santiago do Cacém. Foi na abertura do 6º Festival Terras Sem Sombra, promovido pelo Departamento do Património Histórico e Artístico da Diocese de Beja e produzido pela Arte das Musas. O alinhamento de "Oriente-Ocidente" baseou-se no disco com o mesmo título e em "Istanbul", projecto de 2009. Largas centenas de pessoas a transbordar para fora - apesar do frio.

"Orient - Occident", como outros discos seus, traduz a herança de Sefarad, do Al-Andaluz, de Bizâncio. Escreve que a música pode ser um antídoto espiritual contra o conflito ou, como diz Amin Maalouf, um diálogo das almas. É o que busca com o seu trabalho?

A música é sempre fonte de diálogo. Para fazer música, tem de haver diálogo com os músicos, com o público. Creio no poder da música, porque o vivo cada dia. Quando é profunda, emocionante, bela, a música pode mudar-nos. Aqueles que têm o privilégio de se expressar com a música têm a responsabilidade de mostrar que a linguagem musical do Oriente e do Ocidente era comum, que não havia a separação enorme que há hoje. Que, há muito tempo, especialmente na Península Ibérica, a linguagem destas culturas era muito próxima. Cada uma tinha o seu estilo, a sua expressão, a sua língua, os seus ritmos e modos. Mas todas as culturas medievais trabalhavam sobre a mesma base da melodia ornamentada, do ritmo da dança e das estruturas de improvisação. Quando, no Ocidente, inventámos a polifonia, fomo-nos separando. Dá-se um divórcio total entre o mundo ocidental e o mundo oriental - que nunca mais se encontraram. Projectos como "Orient - Occident", "Jerusalém" e "Istanbul" mostram que o entendimento entre culturas foi possível muitos séculos e teria de o ser outra vez.

(Em conferência de imprensa antes do concerto, Jordi Savall dirá que "as músicas populares são as que melhor definem a história de um povo e que as que têm mais emoção". Músicas sefarditas, fados, músicas escocesas ou irlandesas, canções catalãs são "sobreviventes: sobreviveram ao esquecimento e ajudaram os povos que as cantavam a sobreviver; isso é o que lhes dá tanta força e tanta beleza, anda hoje.").

A ideia do projecto nasceu após o 11 de Setembro. A música continua um instrumento válido para aproximar culturas?

Seria até mais taxativo: a música e a cultura são a única porta que ainda podemos utilizar; todas as outras - políticas, sociais, violentas - foram um fracasso. A única que não se explorou nem aproveitou verdadeiramente foi a voz da música e da arte. Quando comecei "Jerusalém", com mais de 50 músicos da Palestina, Israel, Marrocos, Turquia, Arménia, Síria, Afeganistão e toda a Europa, foi difícil convencer um palestino tocar com um israelita e um arménio com um turco. Mas agora, quando acabamos um concerto, depois de duas horas tocando e cantando juntos, cada um com sua música, é algo maravilhoso. É um exemplo para os políticos, é muito importante.

(Outro falhanço dos políticos: "A nível dos Estados não se faz tudo o que se devia fazer" para preservar a música histórica. Em Espanha, a recuperação do património não tem nem um por cento dos milhões que se gastam em ópera ou em orquestras sinfónicas. "Isto é muito grave porque, em Espanha e na Península Ibérica, o património mais importante vai do século XII - as cantigas, os códices medievais e dos peregrinos - aos grandes cancioneiros do século XV, XVI e XVII, em especial da música religiosa dos grandes mestres, entre os quais muitos portugueses. Isso sobrevive porque alguns loucos dedicamos a nossa vida a estas coisas. Se não existisse iniciativa privada, não se escutaria música antiga. As instituições públicas não se ocupam dela", com excepção de França, entre os países latinos.)

No Ocidente, sempre houve como que uma contaminação entre o sacro e o profano. E no Oriente?

É igual, mas não diria uma contaminação, antes um enriquecimento. A maioria das músicas começa sempre como linguagem espiritual e depois lúdica; isso mesclou-se sempre. A música é o que dá sentido ao ser humano. Um bebé, quando nasce, não compreende nenhuma língua, mas compreende a música e, através dela, começa a ser sensível e verdadeiramente humano. Sem a música, não nos poderíamos entender: ela dá sentido às palavras.

Na música religiosa, criada para funções rituais ou litúrgicas, é possível abstrairmo-nos dessa origem? É possível hoje escutá-la apenas a uma dimensão estética?

Esse é um dos grandes perigos. Quando se desenvolve apenas a capacidade de desfrutar da parte estética, termina-se em Auschwitz [silêncio prolongado]. O comandante nazi que desfrutava a ouvir tocar Mozart aos seus prisioneiros fruía muito da parte estética da música. Mas a sua dimensão espiritual estava a zero, tal como a sua sensibilidade e o seu humanismo. É muito importante não separar nunca o desfrute da beleza da parte estética de uma obra, da sua dimensão espiritual - que é o que dá sentido a tudo. O sentido do sacro - que não significa necessariamente religioso - é que o homem é sagrado, as palavras são sagradas, porque são algo essencial, que não podemos perverter. Se utilizamos apenas a beleza, estamos a perverter, a utilizar algo somente exterior e superficial. Esse é o princípio da decadência.

Diz que as palavras são sagradas. Foi por isso que convidou Saramago a escrever sobre "As Sete Últimas Palavras de Cristo na Cruz", de Haydn?

Claro. É muito importante termos uma visão das coisas que não seja apenas de um lado. O sentido da morte de Jesus visto por um filósofo como Raimon Pannikkar é maravilhoso. Mas a visão que tem José Saramago também. É importante respeitarmos as pessoas que não crêem ou pensam como nós. Isso ajuda-nos a ter uma visão crítica das coisas. A propósito da frase de Jesus "Pai, porque me abandonaste?", Saramago diz "Não sei porque te faço esta pergunta, se não fizeste nada mais na história do homem que abandoná-lo à sua sorte." É uma reflexão legítima: de um ponto de vista humano, tem-se a impressão de que Deus se esqueceu dos homens. Quando permite o que passa no Haiti, na Tchetchénia, no Iraque, quando permite que milhões de pessoas inocentes sofram pela ambição política, pelo que se passa em Gaza... é uma reacção justa.

Quando escutamos a sua música, parece que estamos perante uma encenação teatral: vemos as tradições populares, os modos de rezar, os bailes de corte, a cultura dos cátaros como em "Le Royaume Oublié"...

Deixe-me dizer que não é teatral, é a vida, é a música que explica uma história.

... ou ao invés, como em "Misteri d'Elx", recupera uma encenação para a música. Para manter vivo este património?

Sim, porque um concerto com as mais bonitas canções de trovadores já se fez. É interessante, mas já não suficiente. É diferente um concerto [como "Le Royaume Oublié"] em que se explica a história: uma canção fala de destruição, outra pede a Deus que não envie torturadores, ou recita-se o texto em que o Papa chama à cruzada, com palavras terríveis, que só Hitler ou alguém assim podia usar. "Pacificar estes povos, mas destrui-los com toda a imaginação; tirar-lhes as suas terras e matá-los a todos, mas sempre com a justiça e a paz." Como é possível?

Estas coisas repetem-se hoje. A casa de um herético era destruída como se destrói a casa da família de um terrorista, na Palestina. Autorizava-se que uma pessoa fosse torturada, exactamente como se passa em tantos sítios, em prisões secretas ou em Guantánamo. As cruzadas que se fizeram na história tinham sempre uma razão que escondia outra. A música pode dar-nos lucidez, porque leva sempre à beleza da emoção do coração. Quando um cantor ou músico toca, a história toma vida. Esta é a responsabilidade que temos como músicos: não só divertir as pessoas e fazê-las desfrutar, mas também fazê-las pensar, reflectir, através da música.

(Sobre "Le Royaume Oublié", última obra editada, Savall diz que era importante "refrescar a memória" sobre "a época dos trovadores, da Occitânia, um dos momentos mais belos da Idade Média". E explica: "Há uma ideia obscura da Idade Média, mas é uma época luminosa, em que a influência árabo-andaluza inspira o amor platónico dos trovadores; os judeus que vão à Occitânia desenvolvem a filosofia, traduzem textos antigos, há um grande contacto nas universidades. É uma época de diálogo, nobreza, cultura musical muito rica. Também uma época trágica: com a cruzada contra os albigenses, produzem-se talvez os factos talvez mais graves do Ocidente em toda a sua História", antes do nazismo. "Toda uma população cristã, por ter outra maneira de perceber o cristianismo, foi exterminada. Temos a responsabilidade de dizer que isto não está bem. E, com a emoção e a força espiritual que tem, a música serve para entender a História.")

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