Dêem-lhe duas velhinhas, e Tiago Pereira dá-nos o mundo

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Tiago já nasceu na música mas o que faz agora é dar a música a ver

Cruzando a tradição oral e o "sampling", Tiago Pereira cria um cinema (se isto é cinema) novo, e em tempo real, a partir de imagens perdidas em garagens. Amanhã leva "Arroz Negro - remix" ao Citemor

Será "muito difícil dizer exactamente" o que faz Tiago Pereira e é o próprio a admiti-lo. "Logo no princípio, eu percebi que não cabia nos cânones, nas classificações", conta. Logo no princípio, houve "Quem canta seus males espanta". Era um vídeo documental em que o artista misturava o cantarolar do senhor Fernandes, no Alentejo, a imitar o som dos acordeões - "além de ser uma coisa minimal, repetitiva, era um som completamente fora, diferente" - com imagens das andanças do senhor Germezindo, filmadas noutro momento, noutro lugar do Alentejo.  O filme de 12 minutos foi premiado em 1998 nos Encontros de Cinema Documental da Malaposta e permitiu a Tiago Pereira reconhecer-se numa linguagem artística própria.

Continua a ser uma linguagem difícil de descrever: "Ao mesmo tempo que sou vídeo-músico, também faço filmes, também apresento vídeos em tempo real. Visualista é a melhor designação. Sou alguém que está dentro destas novas correntes do audiovisualismo performativo."

Correntes ainda um pouco desconhecidas em Portugal, mas que florescem pelo mundo fora em eventos como os festivais Mapping na Suíça e onedotzero, de Londres, por onde tem andado Tiago Pereira. Isso quando não está, ele próprio, a fazer misturas ou filmes que depois mostra ao vivo e em tempo real, como "Arroz Negro - remix", que apresenta amanhã, às 22h30, no Citemor, em Montemor-o-Velho, ou a performance "Equação", que mostrará a 30 de Setembro no Escrita na Paisagem.

O som manda

Nos dois espectáculos, como em tudo o que faz, é "o tempo real" que conta. É isso, entre outras coisas, que distingue o seu trabalho: ele oferece ao público aquilo que este parece estar a pedir-lhe. É uma arte que "vem do DJ, da cultura do hip-hop".

Do som, portanto. "Eu monto primeiro o som, faço a banda sonora e colo as imagens a seguir. Interessa-me a orgânica musical. Depois de estar tudo construído, se tenho buracos que não dão para sincronizar vou filmar de propósito para aquele conceito. No fundo, o som é que é ditador."

O ponto de partida é o seu interesse pela "memória oral do património imaterial, as lendas, os contos, as cantigas, e tudo o que se pode transmitir oralmente, mas sempre na perspectiva do 'sampler'". Tiago Pereira não se limita a divulgar esse património imaterial escondido por esse Portugal fora: reinventa-o, mantendo-o vivo. E, para isso, liberta-o para outros contextos, atirando-o para o território da arte contemporânea.
"Como artista, quero reinventar. Não tenho esse conceito do recuperar, porque eu vejo sempre o património imaterial como uma coisa viva. O que quero é que seja ainda mais vivo e fale ainda a mais gente", explica.

"Arroz Negro - remix", que leva amanhã ao Citemor, será uma espécie de "live cinema", manipulação áudio e vídeo em tempo real de um filme praticamente desconhecido em Portugal, "Arroz Negro", do cineasta amador José Madeira. "Neo-realismo puro" filmado em Super 8, anos 70, nos campos de arroz do Baixo Mondego, com as cores vivas nas vestes das camponesas de expressão carregada e os acentuados contrastes quando a luz se reflecte na água do rio. Tal como outras obras do mesmo realizador, que filmou "esta ideia do trabalho árduo", dos camponeses e dos pescadores, das gentes do mundo rural, Tiago Pereira acha que "Arroz Negro" merece sair do anonimato.

O passado reinventado

Tiago Pereira foi encontrar as bobines de José Madeira esquecidas numa garagem cheia de água na casa da família do cineasta, que tinha um laboratório de farmácia e fazia disso a sua profissão. Usou parte do filme noutros trabalhos. E esta é a primeira vez que o mostra por inteiro, reinventando-o com a manipulação, em palco, do som e da imagem.

"Tenho os 'loops' preparados, mas em tempo real vou manipular o som e a imagem, vou pôr efeitos por cima, alterar a ordem, misturar uns 'clips' e juntar várias músicas." A haver um espectáculo no dia a seguir, nunca seria o mesmo.

A performance vai ser apresentada "exactamente ali onde o filme foi feito", há 40 anos. Por isso, Tiago Pereira sempre insistiu que a apresentação tinha de ser ao ar livre - será na Praça da República de Montemor-o-Velho. O performer estará ao vivo com uma mesa de mistura à frente do grande ecrã. O importante será "ver como cada pessoa vai olhar aquilo, e identificar ali o seu passado, a mãe, a avó, a tia", e todas as mulheres e todos os homens que viviam da monda. "As pessoas vão reencontrar-se com aquilo. E esse encontro permite muitas coisas. Permite criar um universo."

Como "tempo real", universo é outra das palavras que contam no trabalho de Tiago Pereira. O melhor para descrever o que faz talvez seja recorrer a uma frase bem conhecida do americano DJ Spooky: "Give me two records, I will give you the universe." (Dêem-me dois discos, eu dou-vos o universo.") Tiago Pereira usa-a em brincadeira para definir o seu mundo. Adaptação livre: "Dêem-me duas velhinhas e eu dou-vos o universo".

As duas velhinhas podem ser as "trava-línguas" do Algarve, senhoras dotadas de uma riqueza rítmica que não anda longe do "drum'n'bass", trocando para a frente e para trás jogos de palavras, ao ritmo que entendem, e que são um bom exemplo da riqueza da tradição oral em Portugal, diz Tiago Pereira. "É quase manipulação em tempo real de sintetizadores analógicos, em que o analógico são as próprias velhinhas."

Há casos até em que ele não precisa de duas velhinhas, apenas de uma: a cantadeira Adélia Garcia, descoberta por Michel Giacometti (etnomusicólogo da Córsega que fez várias recolhas em Portugal) na aldeia de Caçarelhos, concelho de Vimioso, Trás-os-Montes, quando tinha 30 anos, na década de 70. Nessa altura, Tiago Pereira, filho do músico Júlio Pereira, crescia no ambiente artístico do Bairro Alto a ouvir todo o tipo de música, do cancioneiro ao hip-hop. E tudo isso o moldou.

"Eu já nasci no mundo da música", diz. "Os meus ouvidos foram educados para ouvir de uma forma precisa." E para fixar tudo o que ouve.

Um pouco como Adélia Garcia, senhora de "um repertório infinito", que tem anotada uma longa lista de músicas e canções. Depois de descoberta por Giacometti, a talentosa cantadeira - "o estar de Adélia é cantar" - entrou em discos de Né Ladeiras e agora é personagem em performances de Tiago Pereira, como tantas outras personagens reais ou que o visualista cria juntando som e imagem.

A 30 de Setembro, quando apresentar a performance "Equação" no Escrita na Paisagem, vai ser assim: às mulheres do canto alentejano, Tiago Pereira vai juntar a música de Eduardo Vinhas e as imagens das três performers do Colectivo SophieMarie (que também estão a aprender o canto alentejano, e que Tiago Pereira vai filmar a cantar em lugares emblemáticos da cidade: Pingo Doce, Corte Inglès, o cabeleireiro FactoLab).

Um admirável mundo novo, e são só mulheres alentejanas a cantar.

 

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