Sandro Aguilar em territórios estranhos

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"A Zona", que estreia esta semana depois de ter dividido públicos do IndieLisboa a Locarno, é um convite a visitar um território que ainda está por cartografar. Uma assombração. De onde é que aparece "A Zona"?

"Sei o que estou a fazer."
Mesmo que olhemos para "A Zona" - primeira longa-metragem de Sandro Aguilar em dez anos de cinema - e não tenhamos a certeza de saber o que ele está a fazer, o importante é deixarmo-nos levar pela certeza de que ele sabe.

Mas Sandro Aguilar não tem ilusões quanto à quantidade de pessoas dispostas a acompanhá-lo para dentro d'"A Zona".
"Para a maior parte dos espectadores um bilhete de cinema é um contrato que se faz com o realizador, e é um contrato que tem regras. Eu não assinei nenhum contrato, e não vou obedecer a nenhuma regra na minha relação com o espectador: quero respeitá-lo na sua inteligência e na sua sensibilidade. Só lhe peço disponibilidade. Mas muita gente não tem essa disponibilidade, e cobra isso aos realizadores. Para quem espera uma narrativa linear, se eu não o faço é porque não o sei fazer. Mas é uma opção, não é uma incapacidade. E aí gera-se um equívoco - imagino que também aconteça com os arquitectos. Eles bem podem programar a casa com uma porta mais pequena, com uma janela sem frisos e sem moldura, mas o espectador, que é quem contrata o arquitecto, diz 'eu é que vou viver aqui e quero florzinhas e galos de Barcelos'." Sandro não põe florzinhas nem galos de Barcelos no seu cinema. (Provavelmente, haverá até quem dificilmente olhe para isto como cinema.)
"Sempre tentei que aquilo que faço não se pareça com nada do que está a ser feito à minha volta. O que me interessa são os planos, as imagens, os sons, o que fazer com essa matéria bruta. Explorar as justaposições, ver que sentidos se podem produzir, explorar as construções narrativas que se podem construir usando a linguagem cinematográfica. Não me sinto bem no interior de qualquer fórmula reconhecível. Não é o meu habitat."

Singularidades de um realizador português.

Sandro Aguilar, 35 anos, sentado a beber café em tarde solarenga de dia feriado num café recatado da João XXI, é afável, conversador, articulado, bem disposto. Não podia estar mais nos antípodas da imagem opaca e oblíqua do seu cinema que pouco tem a ver com o que se faz cá dentro - mesmo que reivindique alguma contiguidade.

"A maioria dos cineastas portugueses que me interessam" - cita: Pedro Costa, João Pedro Rodrigues, João César Monteiro, Manoel de Oliveira "nos seus melhores momentos"... - "estão convictamente à procura da sua linguagem, criando um cinema próprio, idiossincrático, do qual se gosta ou não se gosta. A minha forma de comunicar com o cinema português é partilhar essa liberdade".

Mas...

Quase todos os cineastas portugueses da sua geração já partiram há muito para a longa. Aguilar levou dez anos após terminar o curso. Tem trabalhado como montador - "uma área em que gosto tanto de trabalhar, que me estimula tanto, que o faço essencialmente por gosto, por achar que posso contribuir de alguma forma". Tem trabalhado como produtor no interior de O Som e a Fúria, estrutura que fundou em 1998 com João Figueiras (e que produziu Miguel Gomes, João Nicolau, Renata Sancho, Manuel Mozos - "o nosso objectivo é afastar da produção todo o ruído que não tem nada a ver com o filme, tentar inventar a melhor forma de o fazer acontecer"). E dirigiu uma série de curtas multi-premiadas no circuito de festivais, cujas tendências experimentais, não lineares, levaram muitos a perguntar-se se ele seria capaz de passar à longa.
Ver essas seis curtas progressivamente mais abstractas, depuradas, radicais  - "Estou Perto", 1998; "Sem Movimento", 2000; "Corpo e Meio", 2001; "Remains", 2002; "A Serpente", 2005; "Arquivo", 2007 - é perceber a busca formal que transforma Sandro numa singularidade. Não só dentro do cinema português, mas dentro do cinema que se faz hoje por todo o mundo.
"Aborrece-me a generalidade do que se faz com o cinema. Só vale a pena fazer cinema para investigar alguma coisa com a linguagem, para que ela não se fixe. E quem faz este percurso solitário tem de facto tendência para ficar a falar sozinho. O que faço necessita de uma disponibilidade, de uma participação da parte de qualquer espectador que nem sempre é consentâneo com os nossos tempos."

O fantasma

A esse propósito, fala do "misto de fascínio e de indignação" que recebeu "A Zona" nos doze meses que passaram desde a sua primeira exibição no IndieLisboa 2008, ao longo de uma série de festivais europeus, entre os quais Locarno e Londres (onde recebeu uma crítica apaixonada de Kieron Corless, da revista "Sight & Sound"). "É um filme que divide, de facto, e que depende muito da forma como entramos nele. Muito se tem falado da minha recusa da narrativa, mas nesse aspecto aproximo-me do David Lynch: trabalho com premissas narrativas que não são de linearidade. Não recuso a narrativa - só não a trabalho da mesma forma que a maior parte do cinema. É possível gostar d' 'A Zona' desde que se saiba que este filme não se esgota naquilo que de história está lá dentro."
(Isto não quer dizer que reivindique a influência de Lynch, como não reivindica a de Andrei Tarkovski, Stanley Kubrick, ou a de cineastas com quem tem uma "relação preferencial" como John Carpenter, David Cronenberg ou Apichatpong Weerasethakul. "Tento afastar-me o mais possível de qualquer referência". E, para que conste, não gostou nada de "Inland Empire".)

E o que é aquilo de história que está lá dentro? É um filho que visita um pai moribundo no mesmo hospital em que uma mãe dá à luz uma criança prematura; talvez o homem e a mulher se conheçam, talvez haja uma história em comum, ou talvez não. Quando e onde? Cada um que decida. "A Zona" é. "A Zona" não se apresenta como algo que não é. Para Sandro Aguilar, o filme apenas pede abertura. "É a invenção de um território e convida o espectador a habitar esse território, a participar na sua própria construção. Quem aceita esse convite pode ter uma experiência; quem o nega não vai conseguir entrar; quem estiver demasiado preocupado em tentar decifrá-lo não vai chegar a lado nenhum, não abre caminho por aí. 'A Zona' constrói um território permeável, no qual o que é vivo se transforma em morto ou o que é morto se transforma em vivo, o que é realidade se transforma em sonho e o que é sonho se transforma em realidade. O filme está estruturado como se fosse uma consciência, alguém a pensá-lo de um ponto que não é o nosso, e fá-lo nem estando vivo nem estando morto. É uma assombração. É um filme sonhado por alguém."

É inevitável: há alguma coisa de pessoal neste cinema tão idiossincrático? "Os meus filmes não são autobiográficos, mas são pessoais e lidam com sentimentos que passam pela noção da perda. Tenho um universo temático que lida com as omissões, as ausências, a falta... Uma das conclusões que tirei depois de fazer 'A Zona' é que estava a fazer filmes para tentar modificar as regras do jogo na vida, digamos assim. O facto de fazer habitar os espaços nem que seja por fantasmas é uma forma de lhes dar continuidade, de fazer com que nada se extinga. E faço poucos pontos finais neste filme, lanço muitas premissas - faço com que tudo vá para um território físico e emocional a que chamo 'a zona', mas nenhuma destas linhas é interrompida. Não atingi com isso nenhuma tranquilidade, mas este território faz uma espécie de nivelamento, e isso é apaziguador de certa forma. Tem a ver com a minha forma de olhar o mundo. O mundo não é plácido, está cheio de conflitos e predadores e presas, mas tudo se transforma em tudo e isso sim, é qualquer coisa que me anima."
Agora, um ano depois da conclusão, "A Zona" chega às salas, em plena consciência de que este não é um filme que se enquadre naquilo que passa hoje por ser o "mercado" da exibição comercial. "Gostava que o filme tivesse visibilidade, mas neste momento em que deixou de haver público nas salas para o cinema de autor, para o cinema português, para o cinema iraniano, não vale a pena ter demasiadas ilusões, nem demasiadas desilusões. Não é um filme elitista, exige disponibilidade. As pessoas que estão no Indie a ver filmes trazem essa disponibilidade inventada por um evento, e podem trazê-la para uma exibição episódica como esta, que passa uma, duas semanas e depois o filme desaparece. É ir vê-lo rapidamente, mas é arriscar ver."

Sandro Aguilar sabe o que está a fazer.

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