O Iraque e a vertigem do fanatismo

O Iraque vê, repentinamente, alastrar o clima de guerra que na verdade nunca o abandonou.

As imagens ontem difundidas pelas agências mostravam concentrações e desfiles de homens armados, exibindo pistolas, metralhadoras, cintos de balas, numa profusão bélica mas em jeito de festa, como se fizessem parte de uma reconstituição histórica (ainda há dias, na reconstituição do desembarque na Normandia o mundo viu soldados sorridentes, coisa impensável à época) ou de um desfile comemorativo.

Nem uma coisa nem outra. Os homens armados, uns civis e outros militares, arrastando consigo muitos jovens e crianças, eram (e são) iraquianos xiitas a caminho de um embate sangrento. Isto num Iraque que, repentinamente, viu alastrar o clima de guerra que nunca o abandonou, alimentado com assassínios e atentados bombistas, à escala do país. Pois joga-se agora nele a mais recente cartada do Estado Islâmico do Iraque e do Levante (ISIS), um grupo dissidente da Al-Qaeda, fanático e mortífero, que apesar da sua inferioridade numérica (alguns milhares de combatentes) tem vindo a conquistar cidades e a semear a morte, embora o Iraque possua um “exército” de mais de 900 mil homens, entre soldados e polícias.

Liderado hoje por Abu Bakr al-Baghdadi, o ISIS tira partido, na sua operação de conquista, da forma como o governo iraquiano de Nouri al-Maliki vem vindo, ao longo dos tempos, a gerir a histórica animosidade entre xiitas (a maioria) e sunitas (a minoria, cerca de um quinto da população). Se nos tempos de Saddam, ele próprio um sunita, eram os sunitas que dominavam, apesar de minoritários, devido às imposições ditatoriais do regime, com Maliki foram os sunitas a ser marginalizados e isso criou um descontentamento que, além de reacender velhos ódios, facilitou agora o avanço dos fanáticos do ISIS. O que quer que venha a resultar do confronto entre ambos, xiitas e sunitas, deixará um rasto de violência e sangue.

Um problema iraquiano? Longe disso. Um problema mundial e, já agora, europeu. Porque o peso de imposições pela força, a começar na Ucrânia e a acabar no Médio Oriente, além de criar um cenário de forte instabilidade e incerteza nos destinos de vários países, obriga a Europa a olhar para a sua vizinhança e a encarar o avanço de nacionalismos e fanatismos onde, em anos idos, se sonhou implantar democracias de inspiração ocidental. Esse sonho, alimentado em primeiro lugar pelos devaneios bélicos de George W. Bush, levou a que, após a queda de Saddam Hussein (simbolizada, primeiro, no derrube da sua enorme estátua e mais tarde na sua captura física), muitos respirassem de alívio julgando ter sido derrubado o último obstáculo à concretização de tal sonho. Enganaram-se.

Aquilo que gerou a Al-Qaeda (nascida com apoios ocidentais) e mantém hoje, os seus “sucessores”, é muito mais fundo e obrigaria a mudanças estruturais que nunca existiram, a par de equilíbrios que também nunca tiveram grande sorte. As armas erguidas contra o fanatismo de hoje poderão ser, amanhã, erguidas de novo por causas inomináveis. O caminho da liberdade, que devia ter sido trilhado, ficou-se pelos sonhos de quem já os abandonou.

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