Viagem pela raia

O acordo de Schengen faz 30 anos. O que é a fronteira agora?

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Parou o carro — o motor já em Portugal, o depósito ainda em Espanha — e pôs-se a pregar aos peixes: “Vinde cá, peixes, vós da margem direita que estais no rio Douro, e vós da margem esquerda que estais no rio Duero, vinde cá todos e dizei-me que língua é a que falais quando aí em baixo cruzais as aquáticas alfândegas, e se também lá tendes passaportes e carimbos para entrar e sair.”

Com aquele “sermão”, iniciou José Saramago a sua Viagem a Portugal. Poderia ter parado e pregado a peixes de outras “confundidas águas”. A fronteira luso-espanhola estende-se da foz do rio Minho, a norte, à foz do rio Guadiana, a sul. São 1214 quilómetros de uma linha em grande parte líquida.

Já nenhum guarda lhe pediria passaporte. A 17 de Junho de 1984, faz agora 30 anos, Bélgica, Alemanha, França, Luxemburgo e Países Baixos reuniram-se para definir as condições necessárias à livre circulação. Um ano depois, a bordo do Astrid, no rio Mosela, assinavam um primeiro acordo. Um outro, mais complexo, viria a ser firmado em 1990, em Schengen, no Luxemburgo. Quando entrou em vigor, em 1995, já Portugal, Espanha, Itália e Grécia dele faziam parte.

Quem andar pela fronteira com a atitude de Saramago, isto é, a prestar atenção a tudo o que é igual e a tudo o que é diferente, depressa perceberá que muitas vezes as línguas se fundem num “portunhol” e que à medida que uma pessoa se afasta quem vem de lá tende a falar espanhol e quem vai de cá espanhol tenta falar, a menos que queira ouvir um: “Es que yo a ti no te entiendo!”

Se dúvidas tiver, pode clarificá-las na mais movimentada fronteira luso-espanhola. Há um intercâmbio à quarta-feira entre a Rádio Fronteira, de Vilar Formoso, e a Onda Cero, de Ciudad Rodrigo: o bloco noticioso de Portugal é emitido em espanhol e o de Espanha em espanhol é emitido.

Dali, da janela da estação de rádio, a fronteira é uma linha invisível com aroma a esteva e a rosmaninho. Umas ruas abaixo, é uma estrada de seis faixas, sem as cabines de outrora, com odor a combustível.

A fronteira é o intermédio, o transitório, o limiar a partir do qual se estruturam povos. Há fronteiras culturais e culturas de fronteira. No dizer da antropóloga Fátima Amante, há identidades raianas construídas a partir das festas populares, da emigração clandestina, do contrabando. As de Portugal e de Espanha estiveram séculos a apurar. É de 1143 o Tratado de Zamora que assinala o nascimento de Portugal. E de 1297 o Tratado de Alcanices que no essencial estabeleceu a fronteira.

Vamos. Sigamos como Saramago à saída de Miranda do Douro, isto é, “aguçando a observação para que nada se perca ou alguma coisa se aproveite”. Num instantinho, estaremos, como o antropólogo William Kavanagh, a comprovar que “pode tirar-se a porta, mas a moldura permanece”.

A mesma cultura agrária

Talvez em nenhum lugar a fronteira se sinta como no Baixo Guadiana. Não pelo estuário, de amplos sapais, lugar de convívio de flamingos rosados, cegonhas brancas, homens que se dedicam à apanha de marisco, à captura de isco, à extracção de sal, mas pelo desenho na paisagem. No litoral algarvio, predomina a pequena propriedade separada por muros de pedra solta ou sebes de opúncias. Do outro lado, a grande propriedade — morangueiros e laranjeiras a perder de vista.

Sentemo-nos com o poeta Francisco Palma-Dias, na sua fazenda, em Castro Marim. Ainda há pouco despachou a produção de damasco para a Alemanha — não havendo distribuidor português, em anos anteriores recorreu a distribuidor espanhol, uma facilidade da fronteira que transformava fruta portuguesa em espanhola. Não tarda a começar a apanha do figo. E todo ele é verbo sobre o “desafio criativo” que a biodiversidade ali coloca ao horticultor, ao lavrador ou ao silvicultor.

A distinção entre o Algarve e a Andaluzia acaba quando acaba o barrocal. A serra algarvia, como a serra Morena, pertence ao Maciço Ibérico. E aí começa a grande propriedade. É o montado, que segue, de um lado e de outro da fronteira, até à Beira Baixa. “A esse nível nunca houve fronteira”, comenta. No que correspondeu, grosso modo, à Lusitânia romana, nome que na Antiguidade se dava ao Oeste da península Ibérica, a cultura agrária é semelhante. São grandes extensões de sobreiro, azinheiras, carvalhiças, nas quais se passeiam o porco alentejano, que os espanhóis chamam ibérico, e o cavalo lusitano, que os espanhóis chamam andaluz.

Apesar da continuidade territorial, a fronteira marca o limite de duas culturas formadas a partir da reconquista. Do lado de cá, deixaram estar os mouros; do lado de lá, expulsaram-nos.

Cristãos da Galiza e das Astúrias povoaram a Andaluzia. Francisco Palma-Dias discorre sobre o modo como a vinda das gentes do Norte, com grande tradição de fumeiro, melhorou a forma de conservar o porco: “Aqui punham-lhe mais sal, tratavam-no como ao atum.” À mesma mesa, a antropóloga Eglantina Monteiro prefere debruçar-se sobre o modo como tal influenciou as práticas religiosas. A serra algarvia ainda é terra de missão da Igreja Católica, enfatiza. A Andaluzia, essa, transborda religiosidade. Em poucas partes se celebra tanto a Semana Santa. A Virgem do Rossio, conhecida por “Blanca Paloma” e por “La Reina de las Marismas”, numa ermida de Almonte, em Huelva, é o expoente de uma tendência que não tem paralelo no Sul de Portugal.

Francisco Amaral, presidente da Câmara de Castro Marim que antes esgotou o limite de mandatos em Alcoutim, lembra-se de protestar com a mãe por ela o forçar a assistir à missa. “Os jovens de Alcoutim não queriam saber de ir à igreja e os de Sanlúcar de Guadiana, do outro lado do rio, tinham uma fé, um fervor. Como é possível uma distância de 200 metros dar culturas tão distintas?”

Foram séculos de costas voltadas, cada qual com a sua História, com o seu sistema político, com a sua administração pública. Amaral lembra-se tão bem de se atirar ao rio, de o atravessar a nado e de a Guarda Civil nem sequer o deixar tirar os pés da água. Só nos dias de festa, havia luz verde entre as duas vilas de branco casario.

Na raia seca, sempre foi mais fácil manter relações, fazer trocas, aproveitar recursos comuns. Mas nem no Norte — como verificou William Kavanagh ao estudar duas aldeias próximas, situadas à mesma altitude, com o mesmo clima, a mesma fé, casas construídas com a mesma pedra — a fronteira se apagou. Nortenhos e galegos podem ir às festas uns dos outros, os seus padres podem unir-se nas missas e nas procissões, todavia, a Virgem galega será simples e a nortenha ornamentada, os galegos tocarão gaita-de-foles e os nortenhos acordeão e as suas casas novas deixarão transparecer que uns emigraram mais para a Alemanha e outros mais para a França.

Cem marcos por colocar

Não dá para seguir rente à fronteira. As estradas vão por dentro, só de longe a longe correm para o país vizinho. Em toda a linha, fortes, fortins e outras estruturas protectoras remetem para os tempos em que o traçado era instável. Apenas no século XVI se tornou a fronteira menos militarizada, menos defensiva, mais comercial, mais focada no controlo de pessoas e bens. Não estava Portugal posto em sossego: caiu-lhe ainda em cima o domínio filipino (1580), teve de bater-se pela restauração da independência (1640) e de entrar na chamada “Guerra das Laranjas” (1801).

Durou pouco a última investida espanhola. “Haverá paz, amizade e boa correspondência entre Sua Alteza Real o Príncipe Regente de Portugal e dos Algarves, e Sua Majestade Catholica El Rei de Hespanha, assim por mar como por terra, em toda a extensão dos seus Reinos e Domínios”, prometeu o Tratado de Badajoz (1801). Guerra entre ambos não tornou a haver. Olivença, essa, ficou do lado de lá.

Permanece incompleta a fixação da linha da fronteira luso-espanhola resultante do Tratado dos Limites (1926). Entre o rio Caia e a Ribeira de Cuncos, na faixa alentejana paralela a Olivença, continuam por fixar cem marcos. Sinal de que, pelo menos para a diplomacia, há ali assunto pendente.

Yolanda e João Tomé conheceram-se no território do grande diferendo. Agora, Olivença é uma cidade airosa, com casas caiadas de branco a ladear ruas com nomes em castelhano e em português, a 22 quilómetros de Elvas. Naquela altura, sem a Ponte Ajuda, era uma cidade airosa, com casas caiadas de branco a ladear ruas com nomes em castelhano, a 46 quilómetros de Elvas.

João gostava de ir ao outro lado ver as moças. Achava que eram mais vistosas, desinibidas, simpáticas. Não faziam carranca quando ele lhes dizia: “Hola guapa!” Sorriam. Decorria 1986. Portugal e Espanha tinham acabado de entrar na Comunidade Económica Europeia. Os guardas estavam mais permissivos. Ele contava 21 anos; ela, 15 e dançavam ambos na pista da Max Power.

Diz o ditado que “de Espanha nem bom vento nem bom casamento”. Não se pense que em Espanha é melhor a expectativa. Corriam “estórias” de portugueses casados que tinham seduzido espanholas solteiras. As raparigas de lá eram ensinadas pelas famílias a evitar os rapazes de cá.

O pai de Yolanda torceu o nariz quando ela lhe anunciou o namoro com um português alto e bem-parecido. Quereria o português aproveitar-se da inocência da sua filha? A mãe de João torceu o nariz quando ele lhe quis apresentar a namorada, uma espanhola esguia, de exótica beleza. Achava que as espanholas nada sabiam o que fazer numa cozinha. Que vida teria com uma mulher dessas?

Estavam enganados o sogro espanhol e a sogra portuguesa. A cozinha em Olivença é híbrida, tem muito de Alentejo — as migas, as sopas de cação, a caldeirada de peixe. E ei-los, ela na cozinha e ele ao balcão do café-restaurante Cidade Nova, à saída de Elvas. Aos 50 anos, ele ainda a olha embevecido.

Do outro lado, licença para “pecar”

Qualquer fronteira insinua a novidade, a diferença. Vão os de Elvas a Badajoz, os do Alto Minho a Vigo ou os de Castro Marim a Ayamonte tomar uns copos ou dar uns pezinhos de dança. Antes de Schengen, a fronteira fechava à meia-noite. Tinha a juventude de voltar cedo ou de dar meia volta, de fintar as autoridades, de passar por outro lado. Agora, o limite é o código da estrada.

Conta o antropólogo Fernando Bessa Ribeiro, ao final de uma manhã perto da Universidade de Trás-os-Montes e Alto Douro, que a norte se “juntam os homens para ir ao café, ao futebol ou às putas”. “Diz-se que o compromisso de fidelidade prescreve na fronteira. Do outro lado, licença para ‘pecar’.”

O fenómeno já se notava nos anos 1980. Explodiu nos 1990. A oferta de “clubes” do lado de lá é tanto maior quanto mais escassa do lado de cá. Vede os eixos rodoviários Valença-Tui-Vigo, Montalegre-Xinzo de Límia, Chaves-Verín, Bragança-Alcanices-Zamora, Vilar Formoso-Fuentes de Oñoro.

Em Espanha, ter um bordel não é praticar um crime de exploração sexual. Os donos dos “clubes” até se organizam em associações. Para melhor satisfazer a clientela portuguesa, contratam brasileiras, procuradas pelas facilidades da língua e pelas afamadas competências eróticas.

O lícito e o ilícito, diz Bessa Ribeiro, sempre se misturaram na fronteira. A fronteira evoca distância, inacessibilidade, isolamento, remete para contrabando, auxílio à emigração clandestina, refúgio de fugitivos. Findo o controlo administrativo e policial, ficou a familiaridade com a “transgressão” e a garantia de alguma invisibilidade, o que vai servindo a compra e venda de sexo e os negócios conexos.

Não é o descontrolo que se pode imaginar. Há um sistema de informação Schengen, em Estrasburgo, a disponibilizar a todas as forças de segurança dados sobre viaturas furtadas, documentos falsificados ou extraviados, crianças desaparecidas, adultos com mandado de captura... E, ao longo das muitas fronteiras internas, centros de cooperação policial e aduaneira, com elementos das diversas polícias de um lado e de outro. Na fronteira luso-espanhola há cinco, três em Portugal e dois em Espanha: Castro Marim, Caia, Vilar Formoso, Quintanilha e Tui. De quando em quando, as autoridades fazem aquilo a que chamam “controlos móveis”.

Memórias de transgressão

Preservam-se memórias de outros tempos em pequenos museus — em Melgaço, Vilardevós (Ourense), Cuidad Rodrigo (Salamanca), Oliva de la Frontera (Badajoz) e Santana de Cambas (Mértola). Frente à escassez de um produto ou a grandes diferenças de preços ou de carga fiscal, sempre houve quem abrisse caminho entre giestas ou estevas, rochas ou tufos, regatos ou rios.

Na freguesia de São Cristóval, em Melgaço, perto do marco de fronteira número 1, Lurdes Durães podia ficar dias inteiros a contar estórias. A mulher, de ágil memória nos seus 73 anos, costuma dizer que nasceu no meio do contrabando: “Depois da guerra civil, aos espanhóis fazia falta sabão, unto, toucinho e outras coisas de comer.” O pai dela “tinha um comerciozito a dois ou três quilómetros”. A mãe dela via espanhóis a entrar e a sair de uma loja ao lado de casa. Saltavam as pedras do rio Trancoso e subiam pelos terrenos dos avós de Lurdes. Era ela ainda bebé quando a mãe arrumou a mobília num canto da sala, de uma tábua fez um balcão, mandou vir “unto, toucinho, sabão — as coisas que os espanhóis vinham buscar” — e pôs-se a vender.

A ninguém causava remorso o contrabando. Aquilo até podia ser crime, mas não seria pecado, dizia-se em Melgaço. Quem era o lesado? O Estado. O que era o Estado? Ali não se via Estado a não ser na sua forma repressiva. Estava Lurdes casada havia um mês quando o marido lhe disse:

— Temos de ir a Ourense!

— Agora, nesta hora, que estou a fazer o comer?

— Já vimos! Vamos e vimos depressa.

Puxou-a da cozinha para a sala, para que ninguém ouvisse o que tinha para lhe dizer, nem visse o que tinha para lhe mostrar.

— Tens de levar este ouro.

— Como vou levar isso tudo?

— Ao pescoço.

Eram muitos fios de ouro. Tantos que Lurdes nem sabe. Anuiu, um tanto assustada. Colocou “para aí 20 ou 30 fios” ao pescoço e meteu os restantes na carteira. Estava uma verdadeira minhota. Dir-se-ia prontinha para ir às festas de Nossa Senhora da Agonia, em Viana do Castelo.

— E se nos prendem? — perguntou.

— Não! O ouro é teu. Ninguém te pode proibir de o levar. Podem assaltar a casa. Andas sempre com ele.

“Eram as nossas desculpas”, conta ela, sentada na cozinha da casa que ainda agora habita. O apurado conhecimento do terreno e o suborno pago aos guardas não explicam tudo. Toda a gente se conhecia. No contrabando andavam familiares, amigos ou vizinhos dos guardas. Nas décadas de 1960 e 70, alguns, como Lurdes e o marido, até misturavam contrabando com auxílio à emigração clandestina. “Tínhamos esconderijo no carro e levávamos uns quilinhos de café.”

O 25 de Abril de 1974 não acabou com o contrabando. Lurdes e o marido ainda fizeram muito negócio depois da Revolução. Levavam louça, cerâmica. Traziam televisores, aparelhagens. Tanto susto apanhou. Tantas vezes se sentiu à beirinha do fim. E, mesmo assim, tem pena que tudo tenha acabado. “Devia voltar outra vez. As aldeias estão a ficar sem gente. A gente das cidades não quer vir para as aldeias. O que vem fazer? Os nossos novos têm de emigrar ou de ir para as cidades…”

Uma faixa a definhar

Estudiosos como François Guichard anunciaram a catástrofe: a fronteira, “deixando de ser obstáculo, já não filtra nada, e estamos a ver o que foi uma linha de vida correr o risco de transformar-se numa faixa desertada, num espaço-parênteses cuja profundidade se alarga de ambos os lados”.

Desmantelaram-se serviços administrativos e policiais. Já não há cobrança de direitos alfandegários. Esfumaram-se guardas, despachantes, funcionários de casas de câmbio e suas famílias. As escolas perderam alunos; os comércios, fregueses; os centros de saúde, utentes. Desapareceu o contrabando e a candonga.

Da foz do rio Minho à foz do rio Guadiana, nos velhos pontos de fronteira, edifícios sem mobília e sem gente.

No marco de fronteira número 687, no Marvão, fica-se com a impressão de que o futuro assombra quem entra em Portugal por terra. Não se vê vivalma. Só se ouve o som dos passos. A tinta cai dos edifícios devolutos, como a pele de um corpo a decompor-se. Serras escarpadas, despidas, erguem-se do solo verdejante, farfalhudo. No lado de Portugal, as letras que sobram no maior edifício — “Turi” — trazem esperanças de outrora. Atrás da linha invisível, um país inteiro a esvaziar-se.

Vamos. Sigamos viagem, mas não aceitemos, como Saramago, “os princípios básicos que mandam dar atenção ao antigo e pitoresco e desprezar o moderno e banal”. Sabemos, como ele, que viajar desta forma “acaba por ser uma disciplina tão conservadora como visitar museus”.

Do seu posto, da Rádio Fronteira, António Reinas vaticina que Vilar Formoso resistirá pelo menos enquanto a A25, a auto-estrada das Beiras, se interromper ali. Quando construírem o troço que a ligará à A62, a Autovía de Castilla, o trânsito internacional deixará de ter de passar por dentro da vila.

Já nem há Sud Express, o histórico comboio que ligava Lisboa a Hendaye, na fronteira franco-espanhola, e parava em Vilar Formoso à hora do jantar. Há Lusitânia, que termina em Madrid e por ali passa depois da meia-noite. Os portugueses que vivem lá fora também viajam cada vez menos de carro.

Casimiro Flora e a mulher tantas vezes cruzaram a fronteira de carro quando viviam em França. Da primeira vez, partiu ele sozinho de Penedono. Decorria Novembro de 1968. Passou por Chaves, numa furgoneta, coberto com um oleado. Um ano depois, veio buscá-la. Passaram por Vilar Formoso. Ele de táxi, já com os documentos em ordem, ela a pé, por um carreiro, ainda sem passaporte.

Naquela noite, com o mesmo passador, viajavam seis pessoas — três com passaporte e três sem passaporte. Estavam duas raparigas com os maridos e um rapaz, em idade de ir à tropa, com o pai. E eram esses três que, chegados a Vilar Formoso, tinham de sair do táxi e de palmilhar o caminho aberto num campo de cultivo. “Via-se além o cabo do carreiro”, recorda ela. “Vão andando mais um bocadinho e esperam por nós”, tê-los-á instruído o passador. Esperaram horas infindas.

Aguardaram até o sol se levantar. Quando avistaram o táxi, alegraram-se, mas o motorista não parou. Talvez não quisessem dar nas vistas, pensaram. Talvez ainda estivessem demasiado perto da fronteira. Continuaram a andar — um quilómetro, dois quilómetros, três quilómetros, quatro quilómetros…. Iam cansados quando o táxi reapareceu. Ao ver vagas, elementos da Guarda Civil tinham pedido boleia até Ciudad Rodrigo e o motorista não tivera como dizer-lhes não.

Agora, os carros passam velozes para a direita e para a esquerda. Pode estar-se uma hora na fronteira e só ver uma pessoa atravessá-la a pé. Segue pelo passeio o rapaz louro, de calças de ganga e T-shirt, com uma mochila enorme às costas. Porventura desagradado com os horários dos comboios, que espreitou na estação, com certeza indiferente aos elementos do centro de cooperação policial e aduaneira, que nem saberá que existe, pede boleia aos camionistas ali estacionados.

Desde de que a fronteira caiu, só por duas vezes o controlo foi reinstalado. Uma quando do Campeonato Europeu de Futebol, em 2004; outra quando da cimeira da NATO, em 2010.

Da foz do rio Minho à foz do Guadiana, já não há filas quilométricas, nem motivos para parar, esticar as pernas, trocar dinheiro, afagar o estômago, comprar uma lembrança de última hora. Caiu a clientela nos hotéis, nos restaurantes, nos cafés e nas lojas dos antigos postos de fronteira.

Em Caia, entre Elvas e Badajoz, o posto de fronteira foi atravessado pela auto-estrada, que faz uma curva estranha, no intento de prosseguir. Na estrada antiga, paralela, corre o trânsito local. É ao segui-la que melhor se vê os edifícios escancarados, de vidros partidos, mato em redor. De um lado resistem dois restaurantes. Do outro, só um quiosque serve camionistas, ciclistas e outras criaturas em trânsito.

Foi na estrada que liga Elvas a Badajoz que em 1976 José Luís Guerra abriu o restaurante Jardim. Aquilo era uma pequena mina. “De sexta a domingo, fazia 600 refeições a uma média de 5 a 6 contos. Estamos a falar de 25 a 30 euros. Agora, não faço 600 num mês. E estamos a cobrar o mesmo preço que nessa altura!”

Lembra-se de ver dezenas de autocarros de matrícula espanhola estacionados em Elvas. “Vinham comprar atoalhados, lençóis, candeeiros. Os anos bons, bons, bons foram de 86 a 95. Até 2000 não foi mau.” Fazia-se muito negócio em torno do câmbio de pesetas por escudos. Vendia-se muita coisa por ajuste directo. Com o euro, tornou-se menos vantajoso para os espanhóis comprar em Portugal. Nova quebra em 2006, maior em 2008, maior ainda em 2011, ano em que a crise se instalou num lado e noutro da fronteira. Julia, que José Luís conheceu há 30 anos em Badajoz, não vê forma de isto se inverter. A desproporção é enorme: de um lado, uma cidade abaluartada, património mundial, 17 mil habitantes, do outro, uma cidade moderna, a maior da Extremadura, 178 mil.

Eliminadas as barreiras e melhoradas as vias de comunicação, seria de esperar que as relações estreitassem. Elvas não soube reagir, concluiu o geógrafo Miguel Castro, numa tese de doutoramento sobre a faixa Portalegre

Elvas-Valência de Alcântra/Badajoz. A oferta nas mais emblemáticas ruas de comércio retalhista, a Rua de Alcamim e a Rua de Olivença, espelha o declínio. O que os espanhóis ali podem comprar encontram nos hipermercados e nos centros comerciais de Badajoz.

O móbil das deslocações a Portugal é turístico. Os espanhóis vêm passear, comer um bacalhau dourado, um ensopado de borrego ou qualquer outra coisa que lhes ofereça um sabor diferente e escape à lógica das tapas. O móbil das deslocações dos portugueses a Espanha é o lazer e a compra do que não existe em Elvas ou existe em menor variedade ou mais elevado preço — isso tanto pode ser um creme hidratante para o corpo como uma consulta de oftalmologia.

Decadência começou antes

O movimento repete-se entre a foz do rio Minho e a foz do rio Guadiana. Todas as semanas, Marta Vieira cruza a ponte de quatro vias e tirantes que liga Castro Marim a Ayamonte. Vai atestar o depósito, trocar a garrafa de gás ou comprar iogurtes para o filho, gel duche para a família e outros bens. Uma garrafa de gás custa 17,5 euros em Ayamonte e 25 em Castro Marim. A manicure, de 23 anos, tem clientes vindas de Espanha. Cruzam a ponte para pentear os cabelos e tratar das unhas. Pôr unhas de gel custa 50 euros em Ayamonte e 15 em Castro Marim.

O trânsito em Vila Real de Santo António já foi de enlouquecer. Agora, Marta fica desolada só de pensar no estado de abandono da frente ribeirinha. Sobram ruínas das conserveiras que durante tantos anos foram imagem de marca. Entretanto, a cada manhã, carrinhas recolhem operárias para trabalhar do outro lado, na conserva de sardinhas, atum, anchovas, mexilhões e outras criaturas marinhas.

No livro Não queirais ser castelhana — Fronteira e Contrabando na raia da Beira Baixa, a antropóloga Eduarda Rovisco admite o impacte negativo da abertura da fronteira em locais como Valença, Vilar Formoso, Elvas ou Vila Real de Santo António. Parece-lhe, no entanto, que a decadência começou antes. A redução de barreiras alfandegárias e de políticas proteccionistas foram só a derradeira machadada. “Os produtos espanhóis que nas décadas anteriores se iam comprar clandestinamente a Espanha invadiram as prateleiras dos supermercados portugueses e o contra¬bando passou a centrar-se em torno de produtos como gado, tabaco americano e estupefacientes”.

Em Castro Marim, por exemplo, Manuel Nogueira, um pintor de construção civil que hoje faz de tudo, ganhou algum dinheiro com tabaco. “Trazia tabaco de Espanha para cá. Trazia Lola, Fortuna. Isso foi de 78 até 85. Era muito mais barato do que o nosso, compensava, mas cheirava muito, muito… Ui!”

Não, não é tudo imputável a Schengen. Basta, como Eduarda Rovisco, olhar para o “longo processo iniciado a partir de 1960 que coincide com a desruralização da Península Ibérica”. A emigração e o êxodo rural, feito à boleia da industrialização da década de 1960, “produziram efeitos, esses sim, catastróficos na raia”.

Entre 1930 e 1950, quase todos os municípios da fronteira registaram aumentos demográficos. A partir dos anos 1960, a tendência inverteu-se por completo. Alcoutim, na serra algarvia, é um exemplo extremo de uma raia que definha. De 9288 habitantes em 1960, passou para 2917 em 2011.

Na aldeia de Giães, encontramos dentro de casa Alice Teixeira, de 74 anos. De noite, o silêncio é tão denso que ela ouve o vizinho expectorar. Só o homem partilha com ela aquela rua. “Isto era uma aldeia muito grande. Cada vez há menos gente. Eu… passam-se dias…, se não sair de casa, não ouço nada.”

O marido emigrou em 1969. Avançou para a Alemanha e por lá ficou mais de uma dúzia de anos a trabalhar numa fábrica de pneus. Ele ainda lhe disse: “Eu posso arranjar-te trabalho, podes ir, mas há um problema. A nossa Paula depois não pode ir para a escola portuguesa.” Ela ouviu aquilo e deixou-se estar, com a filha, na aldeia. “Se não pensava fazer vida na Alemanha, não tinha sentido ir.”

A filha, professora, partiu há muito. Já viveu em Lisboa, vive em Aveiro. Alice enviuvou e para ali ficou. Doem-lhe as pernas. Não tem a energia do cunhado Ernesto Godinho, que conta 91 anos, só toma um comprimido para a tensão, pouco usa a camioneta que a Câmara de Alcoutim colocou à disposição de quem precisa de ir a Faro fazer um exame ou consultar um médico, e ainda ali tem um filho. “A vida é comer e dormir. O que tinha a fazer já fiz. Agora, cada qual que trabalhe.”

Há lugares que parecem ainda mais longe de tudo, como Pinheiro Velho, em Vinhais, Trás-os-Montes. “O que nos mantém aqui é a agricultura, não é mais nada, nadinha”, diz Manuel Joaquim Viegas, que se aproximara ao ver estranhos, menos curioso de feitio do que cioso da segurança do lugar. Planta tomate, cenoura, cebola, batata, beterraba, milho e outros alimentos. “Só o gado é que se vende e é ao preço de há 30 anos. O vitelo está a 4,24 euros o quilo. Limpo!”

Joaquim não deixa de sorrir, nem perde o ar intrigado. Faz 63 anos em Agosto o homem de média estatura e pele curtida. O residente mais novo já conta 45 anos. A mais velha é Adelaide Gonçalves, que está com 87.

Pinheiro Velho não é um bom lugar para adoecer. “Dez contos [50 euros] para ir a Bragança ao médico”, suspira a senhora, muito magra, cheia de vontade de conversar. Nos meses frios, mora com as filhas — tem três, todas professoras, uma em Lisboa e duas no Porto. Só nos meses quentes fica na aldeia. “Respiro os ares da minha terra, bebo a água da minha fonte.”

Os terrenos agrícolas cobriram-se de mato. Já muita fruta apodrece nas árvores, sem ninguém que a colha. A produção agro-pecuária vai dando lugar a extensas zonas de vegetação por vezes tão densa que é difícil saber onde acaba uma propriedade e começa outra. Só algumas vão sendo reconfiguradas. Transformam-se em áreas protegidas, unidades de turismo rural, centros hípicos…

Em toda a fronteira se fala em aprofundar a cooperação. Autarcas como Francisco Amaral usam palavras como “deprimida”, “pobre”, “desertificada”, “envelhecida”, “periférica” para descrever a raia e depositam esperança na colaboração que desponta a reboque de fundos comunitários.

“A fronteira hoje separa muito pouco”, diz Manoel Baptista, presidente da Câmara de Melgaço. É um ponto de ligação entre povos que se encontram para as coisas simples da vida, como tomar um copo ou comer, ou fazer projectos comuns.” Ali, por exemplo, aliaram-se para limpar as margens do rio Trancoso e para intervir no abastecimento de água em Castro Laboreiro.

Debate-se a partilha de serviços. No Norte, o processo vai mais adiantado. A eurocidade Chaves-Verín já tem, por exemplo, uma agenda cultural comum, com a programação de um lado e de outro, e um cartão de eurocidadão, que oferece entradas livres nos museus e nas bibliotecas, descontos nas termas e noutros equipamentos e serviços dos dois municípios. Outros seguem o mesmo caminho. Os galegos vão à piscina a Valença e os minhotos ao teatro a Tui.

Quem sabe como se relacionarão as novas gerações? Ainda não há os transportes transfronteiriços de que tanto se fala. Quem cresce na fronteira já não tem de contentar-se com os canais de televisão espanhóis, como acontecia em muitas terras quando Portugal e Espanha entraram na União. Muita gente sai para estudar. As redes de sociabilidade dos jovens “vão sendo estruturadas cada vez mais longe da fronteira e os referentes culturais são cada vez mais distintos”, observou Eduarda Rovisco ao debruçar-se sobre a raia em Idanha-a-Nova e Castelo Branco.

Não é sempre assim. Acontece viver-se quase em cima da fronteira. Ao domingo à tarde, idosos de São Gregório, na zona mais a norte de Portugal, vão aos cafés do outro lado jogar às cartas. E é espanhol o padeiro que a cada manhã lhes entrega o pão. Mesmo assim, houve quem barafustasse ao saber que o Governo vendeu a um espanhol, por ajuste directo, a antiga caseta da Guarda Fiscal e 60 metros quadrados de terreno.

Que dizer de tudo isto? Talvez seja preciso recomeçar viagem, como escreveu Saramago no final da sua: “É preciso ver o que não foi visto, ver outra vez o que se viu já, ver na Primavera o que se vira no Verão, ver de dia o que se viu de noite, com sol onde primeiramente a chuva caía, ver a seara verde, o fruto maduro, a pedra que nunca mudou de lugar, a sombra que aqui não estava.”     
 

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MARVÃO
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BADAJOZ
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Olivença
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AYAMONTE
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VERIN
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CAIA
Marvão Adriano Miranda / Publico
Chaves Adriano Miranda / Publico
Verin Adriano Miranda / Publico
Vila Real de Santo António Adriano Miranda / Publico
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Ayamonte Adriano Miranda / Publico
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Chaves Adriano Miranda / Publico
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Alcoutim Adriano Miranda / Publico
São Lucas Adriano Miranda / Publico
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Vila real de Santo António Adriano Miranda / Publico
Castro Marim Adriano Miranda / Publico
Ayamonte Adriano Miranda / Publico
Vilar Formoso Adriano Miranda / Publico
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