Vitória do Tea Party provoca onda de choque no Partido Republicano

Derrota do líder do partido na Câmara dos Representantes é vista como uma viragem ainda mais à direita, mas também como uma revolta contra a forma de se fazer política em Washington.

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John Boehner e Eric Cantor ficaram em choque com os resultados das primárias AFP

A política norte-americana foi abalada esta semana por uma das maiores surpresas das últimas décadas, com a derrota do republicano Eric Cantor nas eleições primárias do seu partido no estado da Virginia.

Cantor, actual líder da maioria republicana e forte candidato a presidente da Câmara dos Representantes, foi ultrapassado pela direita por David Brat, um professor de Economia apoiado pela ala mais radical do Partido Republicano, e já não poderá sequer candidatar-se a um novo mandato nas eleições de Novembro.

Numa primeira leitura, a vitória de David Brat é um sério aviso aos que pensavam que o Tea Party tinha saído ferido de morte da luta interna no Partido Republicano.

Na primeira quinzena de Outubro do ano passado, o falhanço nas negociações entre democratas e republicanos levou ao encerramento parcial do Governo (o shutdown), com os congressistas afectos ao movimento radical Tea Party a serem apontados como os principais culpados por terem resistido a qualquer tentativa de acordo, indo contra as intenções do actual presidente da Câmara dos Representantes, o também republicano John Boehner.

Essa crise política, que ameaçou deixar os Estados Unidos sem capacidade para pagar dívidas pela primeira vez na sua História, acabou por ser ultrapassada com a intervenção de membros do Senado dos dois lados da barricada, mas deixou feridas mais profundas do que muitos analistas e políticos pensavam.

As feridas internas começaram a sangrar abundantemente esta semana, com a inesperada derrota de Eric Cantor nas primárias, e logo por uns expressivos 11 pontos de diferença (55,5% contra 44,5%).

Apesar de ter surgido nos últimos tempos como um homem de consensos perante os olhares dos republicanos mais à direita – que não o perdoam por isso mesmo –, Cantor é tudo menos um moderado: em relação ao aborto, disse que é contra "o uso de dinheiro dos contribuintes para matar vidas inocentes", e recolhe 100% de aprovação na Comissão Nacional do Direito à Vida, cuja finalidade é "restaurar a protecção legal à vida humana inocente"; por outro lado, tem apenas 7% na lista da União Americana para as Liberdades Cívicas, tendo votado contra o alargamento da protecção federal à violência contra mulheres quando estão em causa casais de pessoas do mesmo género e imigrantes.

O principal trunfo do seu adversário nas primárias da Virginia, David Brat, era a posição moderada de Eric Cantor sobre a reforma da lei da imigração, mas alguns analistas consideram que o problema é mais profundo – indica um crescente desagrado do eleitorado republicano com as relações íntimas entre os seus representantes e as grandes empresas, e reflecte também um voto de protesto contra os políticos de Washington.

"Com a chocante derrota de Eric Cantor na noite de terça-feira, as coisas pioraram para a Câmara de Comércio dos EUA e para a Business Roundtable", escreve a jornalista de Política Jia Lynn Yang no The Washington Post, referindo-se a duas das principais organizações de promoção dos interesses dos grandes empresários.

Por mais estranho que isso possa parecer a todos os que acompanham a política europeia, Cantor, o homem que o Tea Party acusa de ser um moderado por apoiar a reforma da lei da imigração, é também o alvo da ira do movimento mais à direita do Partido Republicano por favorecer os grandes empresários.

A explicação está no desencanto com as políticas que, de acordo com o Tea Party, estão a roubar postos de trabalho aos cidadãos nascidos nos Estados Unidos.

"Brat acusou Cantor especificamente pelo seu apoio ao reforço do programa de vistos H1B, uma política particularmente do agrado das empresas de tecnologia como o Facebook, já que lhes permite contratar mais engenheiros estrangeiros. Os críticos têm dito que o programa permite às empresas contratarem mão-de-obra barata para aumentar as margens de lucro, e que põe os trabalhadores estrangeiros à frente dos americanos", escreve a jornalista do The Washington Post.

Mais do que a sua posição moderada em relação à imigração, a derrota de Eric Cantor pode significar um protesto contra a proximidade ilegítima entre políticos e empresários – aquilo a que nos EUA se chama o crony capitalism, um ambiente que pode favorecer a corrupção. Prova disso é que na mesma noite em que Cantor foi derrotado, uma sondagem no seu distrito revelou que 72% apoiam "fortemente" ou "moderadamente" uma reforma da lei da imigração que inclua um maior controlo nas fronteiras, a proibição de as empresas contratarem pessoas sem documentos legais e a atribuição de residência legal automática a pessoas que não tenham antecedentes criminais – três ideias que o próprio Eric Cantor defende.

O homem que derrotou Eric Cantor é doutorado em Economia pela Universidade Americana, uma instituição privada localizada em Washington e com ligações à Igreja Metodista, e mestre em Divindade pelo Seminário de Teologia de Princeton, ligado à Igreja Presbiteriana.

Num texto publicado em 2011 na revista Interpretation (que se dedica à discussão da Bíblia e da Teologia), e citado pelo The Washington Post, David Bret parece defender um modelo de sociedade mais próximo do Partido Libertário do que da corrente ainda maioritária no Partido Republicano, ao acusar o Estado de "deter o monopólio da violência".

"Isso não significa que o Estado seja o único a fazer uso da violência, mas significa que no momento das decisões, o Estado ganhará sempre uma batalha de vontades. Se se recusar a pagar os seus impostos, perderá. Irá para a prisão, e se lutar, perderá. O Governo detém o monopólio da violência. Qualquer lei que aprovemos é sempre apoiada pela força do nosso Governo e dos nossos militares. Confiamos nas instituições do Governo para garantirem a justiça? É isso que a História nos ensina sobre o Estado?", questiona David Bret.

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