A compreensão da Constituição

Do ponto de vista material, substantivo, a ordem política europeia é uma ordem constitucional.

1. No turbilhão da agitação política, situada entre a picante compita eleitoral dos socialistas e o debate em volta da decisão do Tribunal Constitucional, não se mostra fácil evocar o Dia de Portugal. Uma forma interessante de o fazer será porventura regressar, ainda que correndo riscos de monotonia e até de melancolia, a um tema frequente deste espaço: a compreensão da Constituição.

A série já longa de decisões do Tribunal Constitucional sobre as medidas postuladas pelo programa de ajustamento revela, de sobremaneira, uma compreensão conservadora (ou mesmo, muito conservadora) da Constituição.

2. O caso português é um caso muito interessante de abertura progressiva e deslizante da Constituição – da Constituição de um Estado – à Europa, isto é, a uma realidade política não estatal. Esta abertura é demonstrada de modo muito claro pelas sucessivas revisões constitucionais. A Constituição foi aprovada e entrou em vigor em 1976 e a primeira revisão ocorreu em 1982. Esta foi a revisão mais importante de todas, por ter acabado de vez com a tutela militar, vinda da revolução de 1974, e, de resto, por ter criado o agora badalado Tribunal Constitucional. Numa palavra, essa revisão de 1982 fez de Portugal uma democracia liberal ocidental. Já nessa altura se operaram mudanças no artigo que regula a recepção de normas internacionais para preparar a futura adesão de Portugal à então Comunidade Económica Europeia (CEE).

3. Depois desta revisão, todas as outras – e foram mais seis – mexeram sempre em normas que regiam a relação com a Europa. As revisões de 1989, 1992, 2001 e 2004 procuraram evitar e prevenir uma colisão entre normas nacionais (mesmo constitucionais) e o direito europeu. As revisões de 1997 e 2005 trataram do problema do chamado "défice democrático", ao acolherem o referendo, referendo que, apesar de passar a ser possível, nunca teve lugar. De notar que as revisões de 1992 e 1997 regularam a adaptação da relação entre os órgãos de soberania nacional (governo, Parlamento, Presidente) às especialidades do processo de decisão nas instituições europeias. Na verdade, a lógica institucional europeia beneficiava o governo e prejudicava o papel do Parlamento e do Presidente.

4. Uma conclusão é óbvia: a Constituição portuguesa esteve em constante adaptação ao dinamismo e ao progresso do processo de integração europeia. Em sete revisões formais da Constituição, não houve uma – uma única – que não regulasse aspectos da relação com a Europa. E esta conclusão permite dar um passo em frente, um passo deveras mais ousado e atrevido. O processo de integração europeia obrigou, por várias vezes, ao longo de mais de 30 anos, a alterar a Constituição portuguesa. E, se é assim, então é forçoso deduzir que o processo europeu tem algo de intrínseca e essencialmente constitucional. É ele próprio talvez um processo constitucional. E, tomando as coisas esta feição, a relação entre a Constituição portuguesa e os princípios fundamentais da ordem jurídico-política europeia vem a ser – é – uma relação entre duas ordens constitucionais. Uma ordem constitucional formal – a ordem portuguesa ou, por exemplo, a ordem alemã, eslovena ou finlandesa – e uma ordem constitucional informal – a ordem europeia.

5. Em resumo, do ponto de vista material, substantivo, a ordem política europeia é uma ordem constitucional – mesmo que não haja uma Constituição escrita e uma parte das grandes normas constitucionais sejam reveladas, não nos tratados, mas, à boa maneira anglo-saxónica, na jurisprudência do Tribunal do Luxemburgo. Para usar um conceito muito popular na doutrina alemã: na realidade constitucional dos Estados-membros, há uma “Constituição sombra” com a qual as Constituições nacionais e os tribunais constitucionais têm de lidar. Essa “Constituição-sombra” é justamente a Constituição europeia. Uma Constituição material, informal, só parcialmente escrita, largamente jurisprudencial.

6. Retornando ao quadro constitucional português, a grande revisão política de 1982 manteve intocada a parte económica da lei fundamental – parte essa que apontava para uma sociedade socialista e para uma economia mista, muito colectivista e até planificada. Manteve-se assim até 1989! Basta recordar que só em 1989, poucos meses antes da queda do Muro de Berlim, a Constituição passou a permitir privatizações… Como já disse, entre 1982 e 1989, precisamente em 1986, Portugal aderiu à CEE. Ora, a decisão de Portugal aderir às quatro liberdades do Tratado de Roma não terá alterado a Constituição, apesar de não lhe ter mudado o texto? Isto é, a adesão não provocou uma mudança de sentido das normas, aquilo a que a doutrina alemã chama uma “mutação” constitucional? Apesar de não ser uma revisão formal, ela não modifica por completo, de alto a baixo, a leitura da Constituição logo em 1986? Sendo politicamente incorrecto ou jurídico-politicamente incorrecto: a adesão à CEE não terá sido uma decisão constituinte ou quase constituinte, alterando a leitura da Constituição, sem mexer no texto? Na verdade, cumpre perguntar: as quatro liberdades, ainda hoje, são ou não são a nossa “Constituição económica”, mais do que o serão alguns dos artigos do texto português? Não são elas verdadeiros princípios constitucionais da nossa ordem económica? Não são elas – as quatro liberdades – Constituição em sentido material, substantivo?

7. Fica pois a pergunta: não será diferente interpretar uma Constituição no quadro de um Estado tradicional – cioso do seu território, guardião da sua soberania, paladino da não ingerência –, ou interpretá-la no quadro de um Estado que está plenamente integrado numa outra comunidade constitucional, mais vasta e mais abrangente, à qual não tem, não pode, nem deve subordinar-se, mas com a qual tem necessariamente de se coordenar e de se  articular?

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