Karl Marx tem mais duas ou três coisas a dizer (e uma é sobre esse iPhone que tens aí no bolso)

O Capital é a “comédia pura, dura” – e por enquanto inacabada – em que Sylvain Creuzevault tenta resumir a longa noite capitalista. Proletários de todo o mundo: a luta continua hoje, amanhã e depois na Culturgest.

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À volta desta mesa cheia de pratos de comida e garrafas de vinho até Karl Marx usa iPhone. DR
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Karl Marx foi maior do que Jesus muito antes de os Beatles chegarem à América e em parte é essa aura pop do autor de O Capital, intermitente como um néon de rua a iluminar tanto quanto possível a longa noite capitalista, que Sylvain Creuzevault usa como arma na luta que tem sido transformar a mais fundadora de todas as bíblias da esquerda moderna numa peça de teatro. Sim, medimos bem as palavras: tem sido verdadeiramente uma luta desde que o encenador francês se fechou com 14 actores, O Capital e outros textos fundadores do marxismo numa fábrica desactivada em Lozère, há cerca de um ano e meio, e a luta continua hoje, amanhã e depois na Culturgest, em Lisboa, onde o espectáculo se mostrará numa versão ainda inacabada, e portanto de combate.

Desde a sua primeira apresentação, a 18 de Março passado no Nouveau Théâtre d’Angers (a estreia oficial, com o carimbo do Festival d’Automne, é só a 5 de Setembro, em Paris), O Capital tem de facto dado e levado pancada – sempre em silêncio, porque Sylvain Creuzevault está em blackout total e nada de entrevistas nem de ensaios abertos à imprensa. Entre a versão de três horas que mostrou nessa primeira noite e a versão de duas horas que mostrou na noite seguinte pode estar um mundo de diferença – o mundo que vai entre o “Rimo-nos muito, agarramos os conceitos em pleno voo, perdemo-nos para melhor nos reencontrarmos… Sylvain Creuzevault foi bem-sucedido na sua aposta de montar uma ‘comédia difícil’, metamorfoseando em material teatral as equações económicas e sobretudo a angústia filosófica de Marx” que Philippe Chevilley reportou para o jornal Les Echos e o “um exercício fastidioso servido por um discurso em nada reactualizado: Marx e os revolucionários de Paris saem daqui assassinados” que Cyrille Guerin descreveu no site AngersMAG. Mas também está certamente o mundo total (todas idades do capitalismo, da máquina de vapor ao iPhone) em que Brecht, Freud e Foucault (e às vezes também o resistente argelino Abd el-Kader e o terrorista suíço Chaim Nissim, ou então outro par improvável: Groucho Marx e Dolores Ibarruri, a Pasionaria) são contemporâneos dos revolucionários franceses a cujas discussões assistimos em directo neste 13 de Maio de 1848 em que regressam da primeira manifestação contra as manobras de diversão da nova Assembleia Constituinte, eleita por sufrágio universal.

Estamos, explica Sylvain Creuzevault na nota de intenções do espectáculo, “na encruzilhada entre a revolução política de finais do século XVIII e a revolução industrial do século XIX” e os líderes da célula revolucionária Club des Amis du Peuple discutem, na sua sede da rua Transnonain, o que fazer a seguir (e quem é que tem direito ao prato de lentilhas onde Friedrich Engels já enfiou o seu garfo). Ao contrário de Louis-Auguste Blanqui, François-Vincent Raspail, Alexandre Martin, Armand Barbès e Louis Blanc, nós sabemos que o povo não vai sair daqui vencedor e que ainda antes do Verão tudo acabará em sangue, suor e lágrimas. Mas nem isso faz deste espectáculo a tragédia em que facilmente podia transformar-se: O Capital, insiste o encenador, é a “comédia pura, dura (sim, uma comédia!) sobre os progressos da alienação social obtidos pelo modo de produção capitalista e pela sociedade de mercado”. E a verdade é que sim, ver Foucault sentado ao colo de Freud enquanto o pai da psicanálise lhe acaricia a careca é coisa para nos distrair, até à próxima crise.

Depois do iPhone

O comunismo pode ter morrido, mas o capitalismo não – e portanto Marx continua vivo, recorda-nos a peça com que Sylvain Creuzevault prolonga a experiência iniciada em 2009 com Notre Terreur (também mostrado em Portugal pelo Alkantara Festival, no mesmo auditório da Culturgest). O Capital, a obra em que investiu 20 anos da sua vida, ainda tem duas ou três coisas a dizer sobre o mundo em que vivemos – e uma delas é sobre a definitiva mercadoria-fetiche, esse iPhone meio profano, meio divino sem o qual a vida parece não fazer já grande sentido.

Por causa do iPhone, por nossa causa (“Eu sou o trabalhador-consumidor. Sou a mercadoria perfeita. Sou o meu próprio escravo e o meu próprio negreiro”), é uma história ainda em curso, a do capitalismo, apesar de por momentos se ter pensado que ela ia morrer mesmo ali, sem honra nem glória, encostada à parede pela falência do Lehman Brothers.

Cinco anos depois de ter sondado os mecanismos de terror associados à experiência da Revolução Francesa, e em plena ressaca dessa crise que afinal não foi terminal, Sylvain Creuzevault retirou-se com os seus actores – dos quais exige sempre “um investimento total, ao longo de meses e meses”, notava há uns meses ao Le Monde o delegado-geral do Nouveau Théâtre d’Angers, Daniel Besnehard – e pôs-se no olho do furacão da luta de classes na Europa a caminho da industrialização. Não muito surpreendentemente, descobriu que discussões que pareciam datadas – o valor do trabalho, as funções do Estado, o princípio de extorsão associado à mais-valia, o poder das manifestações, e, já agora, o amor em tempos de cólera – são discussões para ter hoje, amanhã e depois. À volta desta mesa cheia de pratos de comida e garrafas de vinho em que até Karl Marx usa iPhone.

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