Os terrenos espinhosos do futuro rei

Com que instrumentos conta o futuro rei para actuar? Respostas de Joaquin Prieto, jornalista que acompanhou a transição democrática espanhola

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Susana Vera/Reuters

A opção é clara: reformar o sistema político espanhol para conservar uma qualidade tão útil como a estabilidade ou aceitar as propostas de ruptura dos que desejam estabelecer uma república. Se se ouve a voz da rua, a resposta não dá lugar a dúvidas: as manifestações republicanas sucedem-se em algumas cidades, mas a monarquia só preocupa 0,2% dos espanhóis, de acordo com a última sondagem do CIS, o instituto público de opinião. Já o desemprego é a inquietação prioritária para 80%. Este é o cenário que, dentro de dias, preside ao acto fundacional do reinado de Felipe VI.

Com que instrumentos conta o futuro rei para actuar? “Juan Carlos foi um chefe de Estado neutral que ajudou a suavizar as amargas divisões da Guerra Civil”, afirma o historiador Paul Preston. E é nesse reconhecimento que se resume o reinado que finda. Não há qualquer mudança de regime pelo facto de um rei suceder a outro. Apenas a expectativa de que o futuro chefe de Estado ajude a reformar as muitas fendas do actual edifício institucional. O príncipe Felipe recebe do seu pai o valor da neutralidade política perante as contendas dos partidos, mas também a urgência de favorecer a reforma das instituições desacreditadas por corrupções e desvergonhas numa sociedade que ainda não se recuperou da interrupção brusca da sua prosperidade económica do princípio do século.

A herança política que Juan Carlos de Borbón deixa ao príncipe Felipe é não ter participado em nenhuma das opções em conflito, depois da construção e estabilização do regime democrático que substituiu a ditadura de Franco. A mesma Constituição que estabeleceu a monarquia como forma política do Estado reduziu ao mínimo os poderes do rei. Don Felipe carece de poder político, e em foco vai estar toda a habilidade que demonstre para “arbitrar” e “moderar” o funcionamento das instituições, que é a margem concedida constitucionalmente ao rei.

Para além dos poderes formais, o príncipe herda também uma monarquia debilitada. Afectado por problemas de saúde, com a sua popularidade tocada, D. Juan Carlos não conseguiu evitar a erosão dos escândalos que se sucederam nos últimos três anos. A fraude fiscal de Inãki Urdangarin, genro do rei — a justiça tem de decidir se a cometeu só ou com a sua mulher, a infanta Cristina — foi descoberta quando milhões de espanhóis eram enviados para o desemprego e várias centenas de milhares expulsos das suas casas por não poderem pagar as hipotecas. Esse era também o contexto quando D. Juan Carlos foi descoberto numa caçada no Botswana, um erro que levou o rei a pedir desculpas publicamente.

O sucessor parte de um nível de popularidade mais alto que o rei que abdica, o que o pode ajudar nos primeiros momentos.

Outras incógnitas acumulam-se relativamente ao seu reinado. A monarquia apoiou-se até agora na alternância no Governo dos dois partidos principais, os socialistas do PSOE e os conservadores do PP, mas esse consenso está em causa. Ninguém pode hoje garantir que esses continuarão a ser os partidos que estruturam o Estado depois das eleições legislativas de 2015. A maioria dos cidadãos considera-os estruturas muito fechadas, culpa-os de capitulação face aos bancos e aos grandes investidores, acusa-os da corrupção. Os dois partidos sofrem uma deterioração particularmente intensa na Catalunha e no País Basco, onde os nacionalistas e os independentistas daquelas comunidades elevam os confrontos territoriais à máxima tensão.

Com 46 anos, D. Felipe de Borbón é uma pessoa quase inédita para os espanhóis. Durante o seu tempo de príncipe herdeiro evitou pisar o terreno do pai, o que ocultou a sua aprendizagem como rei. A Constituição não atribui nenhuma função ao herdeiro que nunca dispôs de equipa própria — apenas de alguns colaboradores — nem de um espaço singular de actuação.

O futuro rei é considerado uma pessoa séria, preparada, com domínio de idiomas (francês, inglês e catalão). Estudou Direito, passou pelas academias militares, fez um master em Relações Internacionais nos Estados Unidos. E destacou-se como desportista. Desde há vários anos relaciona-se com universitários, investigadores e altos quadros. Também conhece numerosos mandatários latino-americanos, porque foi representante do rei em inúmeras tomadas de posse de chefes de Estado dessa zona do planeta, muito importante para Espanha por razões económicas e culturais.

Juan Carlos também não permitiu à sua família a mínima declaração pública que não estivesse controlada pela Casa Real. Nem sequer ao príncipe que, ao contrário do que ocorre com Carlos de Inglaterra, numa se viu envolvido em polémicas. Alguns sectores alarmaram-se por Dona Letizia, numa simples cerimónia académica sobre a língua espanhola, ter declarado: “Não é o mesmo dizer ajudas e resgate, recessão e crescimento negativo, ou reestruturação em vez de cortes.” Esta alusão aos eufemismos utilizados na linguagem política e empresarial excitou os que sempre estão predispostos a alarmar-se pelo facto de Espanha ter “a primeira rainha de classe média”, como o diário El País chama a antiga apresentadora de telejornais e mulher do futuro rei, que sacrificou a carreira profissional pela função complexa e supervigiada que a espera. Não em vão, o escritor e jornalista monárquico Luís Maria Ansón se opôs à ideia da abdicação, com o argumento de que se D. Felipe, já rei, morre antes da sua primogénita Leonor (ainda faltam dez anos para a cumprir), a regência seria exercida pela mulher. O escritor Ansón supõe que “a opinião pública” não aceitaria Letizia como regente.

A Espanha tem pela frente muitas tarefas fundamentais: melhorar substancialmente o emprego, garantir aos cidadãos a manutenção da protecção social, conter a ambição secessionista de boa parte dos catalães, reformar a Constituição. Só o Governo e o Parlamento têm poder político para actuar, mas o futuro rei tem de pôr em jogo o capital de credibilidade que conseguir. A resolução com a qual o presidente do Governo, Mariano Rajoy, dispôs todo o apoio necessário para a abdicação do rei e a proclamação do seu herdeiro complementa-se com o calor com que Alfredo Pérez Rubalcaba, chefe da oposição e líder do PSOE, decidiu apoiar a transição de um rei para outro. No entanto, Rubalcaba é um líder demissionário, à espera de um substituto dentro de mês e meio numa família socialista desconcertada pela sangria de votos. A crise eleitoral dos partidos que apoiam a monarquia e a eficácia dos que se declaram republicanos são dados iniludíveis para o novo rei.

Muitas pessoas que defendem a república como uma ideia racional preferem a monarquia por razões práticas. Assim o explica Roberto Blanco, catedrático de Direito Constitucional, que se declara “republicano por convicção”, mas acredita que a monarquia pode ser no futuro um elemento de coesão política e, sobretudo, territorial, “superior a uma república que, inevitavelmente, sempre apareceria como uma instituição mais partidária”. Ou seja, o rei pode desempenhar o papel de símbolo da unidade e permanência do Estado melhor que um Presidente republicano, pois o primeiro pode manter-se acima da confrontação partidária e territorial, enquanto o chefe de Estado de uma república seria sempre uma pessoa de partido.

O monarca tem de gerar em Espanha unidade política e territorial. E para isso não tem outra alternativa se não comunicar com a sociedade. À margem da preparação e da vontade, a melhor forma de sintonizar com as gerações de espanhóis que não viveram a transição para a democracia reside na idade do rei: 46 anos, só um pouco acima da média de idades da população espanhola. Tal não basta para ganhar a confiança de todos, mas não é desprezível. Contudo, o mais importante é a habilidade que terá de demonstrar face ao duplo desafio que recai sobre os seus ombros: renovar a instituição monárquica e ajudar às mudanças políticas possíveis reclamadas por muitas instâncias, muitas das quais contraditórias.

Seja como for, a reivindicação de um referendo sobre a opção monarquia/república poderá traduzir-se, no futuro, numa força eleitoral como já acontece na Catalunha com a reivindicação de uma consulta sobre a independência daquele território. Não há dúvida de que, ao futuro rei, esperam terrenos espinhosos.     

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/Marcelo del Pozo/Reuters

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