O Bando faz 40 anos num lugar com realidade a mais

Aos 40 anos, O Bando, a cooperativa teatral formada logo depois do 25 de Abril, põe 40 das suas personagens mais marcantes de Quarentena, em Outubro, por causa da doença de excesso de realidade. Até lá, há concertos encenados em diversos municípios.

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Algumas das personagens do espectáculo Quarentena, que se estreará em Outubro programa Agora RTP2
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F. Pedro Oliveiraem A Terceira Margem do Rio de 1990 programa Agora RTP2

Quando se entra no auditório do Fórum Cultural José Manuel Figueiredo, na Moita, no palco vê-se um telhado suspenso por cima de 16 cadeiras, colocadas para que músicos se sentem, como numa orquestra. Nesse telhado estão escritas palavras como utopia, agitação, dúvida, e se por acaso nos interrogamos se o cenário é “só” isto, João Neca, assistente de encenação, pergunta espantado: “Só?”

É que este telhado pode ser o único elemento cénico em palco, mas é grande e pesado e vai correr todos os auditórios municipais por onde vão passar os concertos encenados que festejam, entre Maio e Julho, os 40 anos da companhia de teatro O Bando que se celebram mais tarde, a 15 de Outubro. Com o apoio da Artemrede, uma rede que integra teatros nos municípios do Vale do Tejo, estes concertos encenados têm apresentação única e em cada um deles a mesma premissa: numa noite resgatar três personagens de três autores que marcaram os 40 anos de O Bando, interpretadas por três actores diferentes e 16 músicos. O primeiro é hoje, na Moita, onde se juntam Miguel Torga, Guimarães Rosa e Hélia Correia. Depois o espectáculo segue viagem até Alcanena, Almada, Alcobaça, Montijo e Palmela.

No fim destes concertos encenados, em Outubro, as 40 personagens destes 40 textos, todos de autores de língua portuguesa, encontram-se na Quinta de Vale de Barris, em Palmela, onde O Bando tem o seu palco e residência mais habitual, para o grande espectáculo Quarentena. Aí, estas personagens, explica a companhia, "interrogam-se sobre o tempo que passou, questionando-se sobre a realidade que observam e afirmando sempre a capacidade de ficcionar como caminho para a utopia". As personagens sentem-se estrangeiras no tempo de hoje, em que a realidade tomou conta das nossas vidas e não há espaço para a ficção, acrescentam.

 Diz João Brites, encenador e fundador de O Bando, que “são personagens extravagantes à procura de um lugar onde possam discutir, à procura de formarem uma associação de desajustados”. As 40 escolhas são também “personagens psicológicas”, acrescenta Brites, para quem o objectivo deste espectáculo não é pensar a actualidade de uma forma lamuriosa, mas antes positiva. “Queremos que estas personagens apresentem as suas soluções para este período obscurantista em que estamos a entrar. A arte e a sua possibilidade de reinventar tem a capacidade de arranjar soluções onde parecia mais difícil”. 

O objectivo do grande espectáculo de três horas, em Outubro, não é simplesmente contar a história destas personagens, mas aproveitar o seu passado para criar um texto e uma encenação completamente novas. Já nestas pequenas Quarentenas que vão acontecendo até lá há total liberdade para que cada grupo de actores, que são também encenadores, crie o seu espectáculo a partir das três personagens e de uma banda sonora de Jorge Salgueiro que junta músicas originais e recupera outras compostas para os espectáculos onde as personagens primeiro apareceram. O trabalho é desenvolvido numa residência artística de uma semana com a comunidade do sítio onde se instalam. Os músicos têm, nestas como em diversas encenações de O Bando, um papel muito especial em palco. Foi feito aquilo que Jorge Salgueiro, o compositor, chama de "um trabalho de consciência" do músico em cena. “Quando a música convive com o texto tem que haver uma participação e a música vai abrindo espaço à dramaturgia”.

“É muito bom quando as pessoas nos vêm dizer ‘não sabia que havia actores a tocar tão bem’”, conta João Brites. No Bando há uma total liberdade para que as pessoas que estão no palco e por detrás de cada produção actuem e criem livremente, sem se sentiram presos por aquilo que se pensa que o público vai ou não gostar, diz Jorge Salgueiro. “Tem sido muito importante para mim na procura da relação do artista com o público", explica, sem hesitar em dizer que O Bando é “o sítio mais estimulante” onde trabalhou.

Essa relação é evidente também no modo como O Bando se investiu junto das diferentes comunidades com as quais desenvolveu, e desenvolverá, cada um dos concertos encenados. Não se trata de um trabalho de grande fôlego com a comunidade – que exige muito mais tempo, salienta João Neca –, mas de encontros que querem descobrir o que as pessoas do lugar onde o concerto encenado se apresenta têm para dar aquela encenação. “A relação de O Bando com a comunidade não é meramente altruísta, é um alimento para a nossa criação – ensina-nos o gesto, a linguagem, as relações”, explica João Brites. Isso já estava no início da companhia.

 


Quando João Brites fundou O Bando, vindo de um exílio político de oito anos em Bruxelas, acreditava que a produção artística não tinha "de ser um fruto do trabalho de gabinete, de uma mente iluminada, mas antes da relação com as pessoas e com as suas tradições milenares" . Brites recorda que “defendia muito [em 1974] a nossa maneira de ser". O de O Bando constituiu-se como uma cooperativa e ainda hoje o é. "Quando estávamos exilados éramos pessoas desenraizadas e ao olharmos para o nosso quintal, achávamos que tinha flores bonitas, que era um jardim lindo".

 


Na Moita, O Bando trabalhou com a associação de reformados e pensionistas O Norte e com a companhia de teatro amador Teatro Singular para criar o espectáculo Moita de Quarentena. As personagens Dulcinha (Montedemo, de Hélia Correia, 1987), Madalena (Os Bichos, de Miguel Torga, 1990) e o Filho (A Terceira Margem do Rio, de Guimarães Rosa, 1990) vão ser interpretadas pelos actores que já o tinham feito na primeira vez que elas subiram ao palco pelo O Bando – Antónia Terrinha, Bibi Gomes e F. Pedro Oliveira.

Desta vez, as palavras dos escritores que as criaram servem para as personagens questionarem se vale a pena continuar. Diz Antónia Terrinha que "esta interrogação não seria possível noutro momento que não fosse este, de impasse”. Esse modo de O Bando estar no teatro, com uma intervenção política que não é partidária, fá-la admitir que "nunca podemos fazer o que quer que seja distanciando-nos do mundo lá fora, mesmo que façamos uma peça com dois séculos". A pergunta, diz, é sempre a mesma: "O que queremos dizer com isto?”.

Notícia corrigida no dia 19/05 às 14h57: Corrigido o nome de F. Pedro Oliveira

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