Um país de clientes, emigrantes e mais pobre

A compaixão foi derrotada pela “inevitabilidade” tecnocrática. Vigora uma justiça que opõe jovens e velhos. São tempos de “servidão voluntária”. Opiniões de uma visão crítica de Portugal.

Foto
A troika foi muito contestada nas ruas Daniel Rocha

Três anos de intervenção da troika mudaram a realidade. O balanço de diversas personalidades revela os resultados. Portugal é um país de clientes, de emigrantes e mais pobre.

“Na administração pública, os cidadãos passaram a ser clientes, numa lógica transaccional, quando a nossa relação com o Estado é de cidadãos”, observa António Bagão Félix, ministro da Segurança Social e do Trabalho de Durão Barroso. “Isto é muito visível na Saúde”, exemplifica. A alteração vai num só sentido. “Enquanto se chama cliente a quem recorre aos serviços públicos, continua-se a chamar contribuinte a quem paga impostos, mas pela mesma lógica este último devia ser apelidado de accionista do Estado”, ironiza.

A mudança é também anotada por Raquel Freire do “Movimento 12 de Março” que, naquela data de 2011, surpreendeu com um protesto massivo contra o Governo de José Sócrates. “É fácil utilizar a austeridade para transformar os cidadãos em consumidores, mas não vamos ficar calados, nem quietos”, garante. “Com as privatizações na Saúde e Educação, o bem público está no mercado e o cidadão passa a consumidor, portanto tem de ser solvente”, refere Boaventura Sousa Santos, director do Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra. “Caminhamos para a erosão dos direitos, o consumidor é o que resta quando não há direitos”, alerta.

“Consolidou-se a ideia de que os mercados decidem tudo, o que gerou um efeito de impotência na decisão”, sublinha o historiador José Pacheco Pereira. O que se repercute na acção política. “O debate político empobrece, claro exemplo é a posição do PS que nunca contesta a parafernália governamental, como o Documento de Estratégia Orçamental, os socialistas não se pronunciam sobre o fundo mas nos termos colocados pelo adversário [a maioria no poder]”, observa: “É o mais perigoso para o Estado democrático, porque empurra os cidadãos para os extremos e cria uma anemia no centro.”

Uma situação que Bagão Félix corrobora: “Como a política é submergida na restrição financeira e económica, tirando as formações das franjas há muito mais dificuldade em distinguir os partidos, os que podem governar distinguem-se mais pelos intérpretes do que pelas ideias”. Interromper este ciclo vicioso não é fácil. “Isto deveria conduzir a novas abordagens político-partidárias, o problema é que o sistema está bloqueado, o direito de admissão no espectro parlamentar é muito redutor”, lamenta o ex-ministro. 

“Houve uma erosão da democracia, estes três anos foram demolidores para a credibilidade da política em Portugal, os políticos representavam os interesses dos cidadãos que os elegeram mas, a partir da entrada da troika, estão às ordens da tutela estrangeira”, analisa Sousa Santos. Alterar este quadro obriga, segundo Pacheco Pereira, à devolução da palavra aos cidadãos: “As eleições, um acto que introduz mudança, podiam alterar a relação de forças”. O historiador deixa um aviso para o período que hoje, 17 de Maio, se inicia: “Vivemos um bloqueio com uma componente ficcional de que vai haver alteração estrutural com a saída da troika, mas depois será a vez do pacto orçamental.”

Uma espiral com um único sentido. “Surgiu um lobbyismo global no campo político, com projectos de comunicação social que têm como objectivo decidir quem é ou não aceitável pelo círculo do poder, num remake do centrão, mas sitiado”, refere José Pacheco Pereira.

A experiência do “Movimento 12 de Março” reforça a ideia de afastamento. “Reunimos mais de três mil medidas que entregámos na Assembleia da República, passado um ano apenas dois deputados pediram para ver as folhas e só um as viu mais de uma vez”, relata Raquel Freire: “Os deputados não estão interessados no que queríamos, houve desilusão, quebra do contrato social, a democracia foi baixando de intensidade.”

Pacheco Pereira anota outro aspecto: “Há uma ambiguidade, há uma evolução de uma troika desejada para uma indesejável, mas o que fica é a ideia de perda de soberania.” Reforçada por um ritual de gestos cerimoniais: “O aparato da chegada, das reuniões, das passagens pelos corredores, tudo dá a ideia de perda de soberania.”

Em escasso tempo, houve uma alteração significativa na sociedade portuguesa. “Passámos da imigração, de receber mão-de-obra, para a emigração, de a exportar, com a perda de jovens quadros e aparecimento de trabalho precário, sem direitos”, destaca Boaventura Sousa Santos. “É uma drenagem de cérebros que pode ter consequências”, assinala Bagão Félix.

Contudo, o antigo ministro admite um factor positivo: “Hoje há consciência de que o rumo do país tinha de ser alterado, acabou o primado da ilusão, até na estrutura empresarial nota-se uma alteração do perfil dos empresários, que são mais jovens, mais dinâmicos, mais abertos ao exterior e menos paroquiais.” E assinala respostas inovadoras: “O aparecimento de organizações representativas de interesses específicos, o caso mais curioso é o dos reformados.”

Maria do Rosário Gama, dirigente da APRE! [Associação de Aposentados, Pensionistas e Reformados] criada em Outubro de 2012, revela que por mês há 130 novas inscrições: “Estamos a caminho dos sete mil associados.” Recém-chegada, a APRE! mantém o objectivo de ser reconhecida como parceiro social e tem agenda. “O anunciado plafonamento das pensões leva à privatização do sistema e à diminuição das receitas, quando o problema da sustentabilidade da Segurança Social tem a ver com a redução de activos, pelo trabalho precário, desemprego e emigração”, descreve Rosário Gama.

Os reformados consideram-se como um dos alvos do Governo. “Foi posto em causa o colchão social de apoio aos filhos e aos netos, a rede familiar”, frisa a presidente da APRE! Uma situação que o historiador Pacheco Pereira enquadra de outra forma: “Os argumentos sociais foram esmagados e deram origem a um conjunto de subprodutos ideológicos, como a ideia de justiça geracional, ou seja, que as gerações presentes têm de se sacrificar para o futuro, enquanto a democracia faz-se para o presente.”

Na expressão de Bagão Félix, a fragmentação geracional é um dos aspectos mais negativos: “Vive-se um certo mal-estar entre as gerações, umas porque nasceram de menos, outros por viverem de mais, esqueceu-se a compaixão mesmo em aspectos que não significam euros, foi o triunfo da aridez tecnocrática.”

Maria Filomena Molder, catedrática de Filosofia, recorda um filme de propaganda nazi que apresentava o campo de reeducação de Theresienstadt como uma casa de hóspedes: “Era uma fábula tremendamente enganadora.” Um engano que compara ao da propaganda do bom aluno, bem adaptado e obediente. “Os tempos, infelizmente, estão para isto, para a servidão voluntária”, destaca.

A intervenção da troika levou, ainda, a outro caminho. “Quando entrou para a CEE, Portugal tinha cerca de 50% do rendimento médio dos países europeus e encetou a via para a convergência”, recorda Boaventura Sousa Santos: “A troika estancou e inverteu este processo, Portugal vai continuar a divergir da média europeia e vai ter um desenvolvimento intermédio.” Pacheco Pereira realça uma consequência: “A tentativa de substituir a sociedade pela economia, o trabalho pelo empreendedorismo, levou a uma sociedade mais desigual, a pobreza é mantida, tudo o que está no centro é esmagado.”

Bagão Félix valoriza outro aspecto: “A economia não pode prescindir da lei moral, há um distanciamento entre a economia e as regras éticas, estas não podem estar reguladas pela lei, só pelo exemplo, e há uma erosão da autoridade pois o exemplo perdeu importância.”

Três anos depois, o léxico político mudou. “Nunca se utilizou tanto a palavra mercados referente aos mercados financeiros o que representa o aprofundamento de um novo modelo de consumo”, exemplifica Boaventura Sousa Santos: “Empreendedor, outra das palavras, é uma figura individualista.” O ex-ministro assenta baterias a três palavras – empreendedorismo, inevitabilidade e desalavancar: “Qualquer delas representa o primado da circunstância sobre a essência.”

É ao final do século XVIII, às observações de Goethe em Viagem à Itália, que Filomena Molder recorre para abordar o erro das visões apriorísticas da Europa do norte sobre a meridional. Então, Goethe destruiu os estereótipos sobre os latinos. “Não devemos deixar cair sobre o que nos diz respeito e que amamos um manto de silêncio”, alerta a catedrática.

“Apesar de já terem decretado por várias vezes a sua morte a História continua por escrever”, garante com optimismo João Camargo que integra “Que se lixe a troika”. Por seu lado, Pacheco Pereira destaca: “A História é surpresa, por isso não agrada.”

Sugerir correcção
Comentar