Dia de greves, manifestações e de centenas de funerais na Turquia

Sindicatos paralisaram em greve e manifestantes marcharam por todo o país em protesto contra o Governo. Em Soma começaram os funerais de 282 mineiros.

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BULENT KILIC/AFP

“O carvão de Soma vai queimar o Governo”, gritaram ontem os milhares de manifestantes que se associaram à greve convocada pelas principais confederações sindicais da Turquia em denúncia do alegado incumprimento das regras de segurança naquela mina de carvão, e marcharam por várias cidades do país, num emocionado protesto contra a “negligência” e “omissão” do Governo que facilitaram o desastre.

O executivo liderado pelo conservador Recep Tayyip Erdogan pode não arder, mas está verdadeiramente sob brasas depois da sua resposta à tragédia que matou pelo menos 282 mineiros na passada terça-feira (esse é um número que vai obrigatoriamente ser revisto, uma vez que dos 787 homens que se encontravam no interior da mina quando se deu a explosão, só 363 conseguiram escapar após o incêndio que encheu a mina de gases tóxicos).

“Somos todos de Soma” e “Em todo o lado, a palavra é: resistir”, além de “Tayyip, assassino”, repetiram os manifestantes, agastados com o desprendimento revelado pelo primeiro-ministro perante as fatalidades em Soma. “Por alguma razão a literatura consagra a figura do acidente de trabalho. Faz parte da natureza do processo. Acontece em vários sítios, e aconteceu aqui”, observou Erdogan, ilibando o Governo de qualquer responsabilidade no incidente.

Os manifestantes marcharam com capacetes amarelos e a cara pintada de fumo. “O que aconteceu não foi um acidente, foi um homicídio, e quem foi responsável foi o Governo”, dizia uma das grevistas de Ancara. Na capital, em Istambul e Izmir, a terceira maior cidade turca, as marchas foram repelidas pela polícia, que usou gás lacrimogéneo e canhões de água para dispersar as concentrações populares.

Os sindicatos acusam o Governo de laxismo na regulação e supervisão das regras de segurança e condições de trabalho. “Os culpados pelo massacre de Soma são os mesmos que desenharam esta política de privatizações que põe em risco a vida dos trabalhadores para reduzir custos e alcançar lucros. A responsabilidade é deles”, considerou a Confederação dos Funcionários Públicos Unidos.

A ignorância do Governo é ditada pela “conveniência”, argumentam os opositores de Erdogan, assinalando a excessiva proximidade do primeiro-ministro e dos grupos económicos que beneficiaram das privatizações, incluindo a Soma Holdings, que detém a exploração da mina de carvão. Ozgur Ozel, um deputado do Partido Republicano Popular, insistia ontem que o partido de Erdogan foi o único a manifestar-se contra a constituição de uma comissão de inquérito à segurança nas minas – a maioria parlamentar funcionou para bloquear a proposta, apesar de a Turquia figurar no topo da lista dos países com mais acidentes laborais no mundo, especialmente no sector extractivo.

Como aconteceu na véspera durante a visita de Erdogan e membros do seu Governo, a população de Soma reagiu com fúria à presença do Presidente turco, Abdullah Gül, que se deslocou até à entrada da mina para um ponto de situação das operações de resgate. A chegada do Presidente “povoou” o local de segurança: agentes da polícia e militares que foram acusadas de impedir que as equipas de emergência pudessem trabalhar. “Por causa dele o resgate parou. Precisamos de bombeiros e não de polícias. Gül vai embora”, exigiram as famílias dos mineiros.

A esperança já abandonou completamente aqueles que ainda aguardam pelo retorno dos seus familiares no interior da mina – pelo menos 150 mineiros permanecem desaparecidos. O último sobrevivente foi resgatado na madrugada de quarta-feira, e apesar dos esforços para “alimentar” os canais da mina com oxigénio, era muito pouco credível que os trabalhadores encurralados nos túneis, alguns a mais de 400 metros de profundidade, tivessem escapado aos efeitos do fogo.

A crença num milagre caiu por terra quando as equipas de emergência conseguiram alcançar a única “câmara de refúgio” existente na mina: nesse abrigo foram encontrados 14 cadáveres. Aparentemente, os homens teriam partilhado as poucas máscaras de oxigénio disponíveis, mas essa derradeira solidariedade não evitou que todos sucumbissem ao envenenamento com monóxido de carbono.

O cemitério de Soma sofreu uma expansão para acomodar as centenas de vítimas da mina. Logo pela manhã, um altifalante ia anunciando os nomes dos mineiros que iam a enterrar; a sucessão de funerais voltou a despertar a fúria da comunidade local, que além da dor da perda de tantos homens, se questionava sobre o futuro das famílias que perderam a sua fonte de rendimento.

A indignação contra o Governo cresceu ainda mais com a publicação na maior parte dos jornais diários de fotografias que mostravam um conselheiro do primeiro-ministro, Yusuf Yerkel, a agredir ao pontapé um manifestante caído no chão e manietado por dois soldados. A cena decorreu em Soma, durante a visita de Erdogan. O gabinete do primeiro-ministro recusou comentar o caso, com um oficial a ressalvar tratar-se de um “assunto privado” de Yerkel, que prometeu divulgar uma nota em nome próprio.

O primeiro-ministro ainda não desfez o tabu sobre uma eventual candidatura presidencial, nas eleições marcadas para Agosto. Erdogan está a cumprir o seu terceiro mandato consecutivo, e constitucionalmente está impedido de se manter no cargo depois de 12 anos. Os comentadores turcos diziam que as suas aspirações a manter-se no poder sofreram um abalo com os acontecimentos – resta saber se, como aconteceu com os protestos de Verão na praça Taksim, ou os escândalos de corrupção que envolveram o seu Governo, Recep Tayyip Erdogan consegue ultrapassar mais esta crise e manter-se como o homem forte da Turquia.

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