Famílias de classe média e idosos recorrem a Médicos do Mundo para ter acesso a cuidados de saúde

Relatório dos Médicos do Mundo conclui que as grávidas e crianças são os grupos mais afectados pela crise no acesso aos cuidados de saúde na Europa. Em Portugal, os mais vulneráveis são as famílias da classe média e os idosos acima dos 65 anos.

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Médicos do Mundo dizem que, em Portugal, há cada vez mais idosos recorrem às consultas gratuitas da ONG por não terem possibilidade de suportar as despesas com o Serviço Nacional de Saúde Paulo Pimenta (arquivo)

Grávidas e crianças são os grupos mais afectados pela crise no acesso aos cuidados de saúde na Europa. As conclusões são do relatório da Organização Não- Governamental Médicos do Mundo (MdM) apresentado em Madrid, esta terça-feira. A responsável nacional pela MdM, Carla Paiva, diz que, em Portugal, os idosos com mais de 65 anos e as famílias de classe média são os mais afectados e muitos começaram mesmo a recorrer às consultas gratuitas da organização por não terem condições financeiras para utilizar o Serviço Nacional de Saúde.

O relatório – Acesso aos cuidados de Saúde pelos mais vulneráveis, numa Europa em crise social – apresentado em vésperas de eleições para o Parlamento Europeu, dá conta de dados preocupantes relativos a 2013 e recolhidos nos centros e clínicas da MdM em 25 cidades de oito países europeus (Alemanha, Bélgica, Espanha, França, Grécia, Países Baixos, Reino Unido e Suíça). O documento, com foco no acesso dos mais desfavorecidos aos cuidados de saúde em tempos de crise, salienta que há mulheres na Europa a suportarem todos os custos com os cuidados pré-natais e com o parto e crianças sem acesso a cuidados médicos, sobretudo à vacinação. O relatório não inclui Portugal, porém, os representantes nacionais da ONG adiantam que os idosos portugueses terão sido os mais afectados pela crise.

Entre as 285 mulheres grávidas que participaram no estudo, mais de metade (65,9%) não teve acesso a cuidados de saúde pré-natais antes de ser acolhida na MdM. Mesmo entre as que tiveram acesso a esses mesmos cuidados, 43% foram observadas muito mais tarde do que seria recomendado na sua situação – depois das 12 semanas de gestação.  Na primeira consulta médica, em 70% dos casos o especialista considerou que as mulheres necessitavam de cuidados urgentes (35,6%) ou semi-urgentes (36,7%).

No que diz respeito às crianças, no melhor dos cenários, apenas uma em cada duas foi vacinada contra o tétano, hepatite B, sarampo ou tosse convulsa. Em alguns países a situação foi mais dramática, com taxas de vacinação infantil abaixo dos 30%. Em 21% dos casos sinalizados não foi sequer possível saber com certeza se as crianças tinham ou não sido vacinadas, o que significa que se deveria proceder a uma “re-vacinação” urgente, dado o risco elevado de contrair doenças.

Prioridade é apoio com medicamentos
Em Portugal, o acesso aos cuidados de saúde foi afectado com a crise sobretudo para os mais velhos, essencialmente devido ao corte nas reformas e à grande quantidade de medicamentos que estas pessoas, na maioria dos casos, necessitam e têm de pagar. Neste sentido, Carla Paiva, da MdM, diz ao PÚBLICO que o apoio medicamentoso é uma das prioridades da organização em Portugal e que é evidente que cada vez mais idosos recorrem às consultas gratuitas da ONG por não terem possibilidade de suportar as despesas com o Serviço Nacional de Saúde (SNS).

Um outro caso preocupante é o das famílias de classe média, que antes da crise de 2008 viviam uma situação financeira tranquila e que, por terem perdido os seus empregos, começam a ter dificuldades de acesso aos cuidados de saúde, em particular aos cuidados básicos. "A situação é ainda pior quando têm crianças. Temos cada vez mais pedidos de casais que até agora tinham condições para aceder ao Serviço Nacional de Saúde e pagar as suas taxas moderadoras".

Carla Paiva refere ainda que, em Portugal, o SNS tem problemas estruturais que, para além da conjuntura de crise, dificulta o acesso de imigrantes e mais desfavorecidos aos seus serviços. “São problemas de base. O primeiro é a falta de formação para a informação, isto é, os próprios profissionais de saúde não sabem informar os utentes dos seus direitos. E depois há a barreira linguística” que dificulta a comunicação e afasta as pessoas.

As medidas de austeridade tomadas pelos governos dos países europeus estão a ter efeitos graves na saúde das pessoas, em particular em alguns grupos de risco, já sinalizados antes da crise. Os migrantes indocumentados, os requerentes de asilo, os utilizadores de drogas, os trabalhadores do sexo, os pobres e os mais desfavorecidos estão a ser duramente afectados, notam os responsáveis da organização. Carla Paiva explica que, antes de 2008, era sobretudo a estas pessoas que a MdM prestava auxílio em Portugal. Actualmente, "com o nível de desemprego a 27%, com mais de 3 milhões de pessoas sem cobertura sanitária, num universo de 10 milhões, diariamente os Médicos do Mundo recebem nas consultas muitas pessoas” que não se integram (ou integravam) em nenhum destes grupos.

Mais violência e xenofobia
Esta situação não só é evidente em Portugal como vem reflectida no relatório apresentado pela Médicos do Mundo. De acordo com os dados recolhidos nos centros e clinicas desta ONG, quase todos os inquiridos (93%) vivem abaixo do limiar da pobreza e um terço desses acredita que as más condições de habitação estão a prejudicar a sua saúde e dos seus filhos. O documento revela ainda que apenas 21% destas pessoas tem um emprego.

O relatório assinala outros dados preocupantes, como o aumento da xenofobia, com registo de cada vez mais casos de assaltos e crimes de ódio. Também a violência continua muito presente na vida dos mais desfavorecidos, sendo que 76% dos inquiridos afirmaram já ter vivido pelo menos um incidente violento. Em 20% dos casos, o incidente foi na Europa. Apurou-se ainda que apenas 2% dos utilizadores dos serviços da MdM aponta a saúde pessoal como motivo de migração, percentagem que refuta o argumento de que os mecanismos de protecção constituem um factor de atracção para os migrantes.

A Médicos do Mundo deixa, através do relatório, o apelo para que os sistemas de saúde nacionais sejam universais, baseados na solidariedade e na justiça, e abertos a todos os que vivem na União Europeia.
 
Texto editado por Andrea Cunha Freitas

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