Rentes de Carvalho homenageado como "dos últimos aventureiros" da literatura nacional

Primeiro romance do escritor, Montedor (1968), vai ser reeditado pela Quetzal em Outubro.

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José Rentes de Carvalho em Torre de Moncorvo, no ano passado Adriano Miranda

O escritor José Rentes de Carvalho (n. Vila Nova de Gaia, 1930) "sofreu", segundo o seu próprio termo, a primeira homenagem na noite de sábado, em Matosinhos, classificado pelo antigo secretário de Estado da Cultura Francisco José Viegas como um "dos últimos aventureiros" da literatura portuguesa.

Residente entre Amesterdão – onde se radicou há mais de cinco décadas –  e Trás-os-Montes, José Rentes de Carvalho tem vindo a ser redescoberto nos últimos anos, dizendo Francisco José Viegas, seu editor, que se está a "construir o lugar de um homem que durante anos foi ignorado em Portugal".

Assim, Viegas anunciou na homenagem que decorreu no âmbito do festival Literatura em Viagem (LeV), que este domingo termina em Matosinhos, que o primeiro romance de Rentes de Carvalho, lançado em 1968 pela Prelo com o título Montedor, vai ser reeditado em Portugal pela Quetzal em Outubro, esperando-se um romance inédito para 2015.

"O que acho que, neste momento ou neste ano, as pessoas descobrirão em Montedor é a aflição de querer sair do Inferno que Portugal era na altura [da sua edição], uma escuridão total nas pessoas; não havia futuro, não havia esperança. Hoje, talvez essa miséria do antigamente se renove, e talvez as pessoas, principalmente aquelas que têm 30 ou 40 anos e que não têm futuro ou se sentem desesperadas, encontrem nesse livro alguma coisa que lhes fale ao coração", disse Rentes de Carvalho sobre esse seu livro perante uma sala quase cheia na Biblioteca Municipal Florbela Espanca.

O escritor de 84 anos confessou ainda que Montedor retrata a história do que lhe teria certamente acontecido a si mesmo caso não tivesse saído de Portugal. "Eu não tinha qualquer hipótese de construir um futuro em Portugal, eu era rebelde, era mau, era intolerante, furioso... Tinha uma raiva grande, e sair de Portugal salvou-me, porque, se tivesse ficado, ia ser o protagonista de Montedor, o sujeito que está sempre à espera do que sonha e que nunca vai acontecer. Isso cria um desespero interior que é fatal para a pessoa", reconheceu Rentes de Carvalho, que salientou ainda sentir, "de vez em quando, uma espécie de asfixia".

Em Março, a Quetzal publicou Portugal, a Flor e a Foice, um olhar sobre os acontecimentos da revolução de 25 de Abril de 1974, escrito no ano logo a seguir, que documenta perspectivas críticas sobre a situação do país que o escritor assegura ainda manter.

"Talvez durante umas horas, no dia 26 de Abril e, depois, no 1.º de Maio, tive a impressão 'isto, com certeza, vai mudar; esta gente é boa, ao fim e ao cabo'. Toda a gente se abraçava e ria, mas dentro do peito e bem fundo eu sabia que não podia mudar. Eram as mesmas pessoas. Já lhes tinha dito isso 10 anos antes da Revolução: 'Vocês são os mesmos, não mudam, só querem a mesma manjedoura que os outros têm'", afirmou, antes de rapidamente sintetizar: "As moscas mudaram"...

Após estes anos de crise, é fácil ser-se céptico. Mas Rentes de Carvalho já o era quando não dava jeito sê-lo, e vale a pena ler o que o autor dizia sobre Portugal há uma dúzia de anos. Numa notável entrevista a Rui Ângelo Araújo e Carlos Chaves para a desaparecida revista Eito Fora, publicada – note-se bem! – em Setembro de 2001, Rentes de Carvalho é desafiado a “fixar um despreconceituado e severo monóculo nos costumes deste país, como Eça quis fazer”, e a dizer de sua justiça sobre “a história recente de Portugal, nomeadamente nos aspectos cultural e político”.

Vale a pena transcrever um excerto da sua resposta, com a devida vénia aos autores da entrevista:

“Só porque agora as coisas vão visível e temporariamente menos mal do que antes, criou-se o mito de que Portugal vai bem. Mas na realidade não vai. Pouco importa se olhamos de fora ou de dentro para realizarmos que o suposto bem-estar actual é um bem-estar de pechisbeque. Com consequências muito desagradáveis para as gerações futuras, a quem será apresentada a factura.

E não se podem ajuizar as condições de vida de um povo medindo-as pela quantidade de jipes dos novos-ricos e dos quase-pobres. Para isso o ridículo de alguns actos governamentais, a corrupção impune, os mendigos nas ruas e as filas de espera nos hospitais, são um índice mais seguro.

Portugal, sabem-no em demasia os políticos e os economistas, é um país endividado, a viver de créditos e que, produzindo pouco e significando pouco, se regozija de num ou noutro ano ser menos pobre do que a Grécia.

É um país que não investe na educação, mas nos todo-o-terreno, e onde os bancos e os ricos conseguem o milagre de pagar uma percentagem de impostos inferior à do operário”.

 

 

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