Cidadania europeia, Tratado Orçamental e política doméstica

É possível uma estratégia orçamental diferente mesmo antes da desejável renegociação da dívida que só poderá ser feita no quadro europeu.

1. “No longo prazo estamos todos mortos”. Esta célebre frase de John M. Keynes é certamente verdadeira, mas coloca-nos um problema ontológico essencial: será que nos devemos ocupar com cenários de longo prazo, saber o que desejamos para a Europa daqui a trinta ou quarenta anos?

Se considerarmos que, enquanto sociedade, não temos a mínima possibilidade de influenciar a agenda política europeia, então não vale a pena perder muito tempo com o assunto. Porém, Portugal tem alguma capacidade de influência sobretudo se souber construir as alianças mais eficazes no quadro europeu. As razões porque me situo no campo europeísta, em defesa de uma Europa federal, republicana, democrática (com duas câmaras representando igualmente os Estados e os cidadãos) são variadas. Muitos dos problemas de hoje têm uma escala ou europeia ou global. A defesa dos direitos humanos, o combate às alterações climáticas, o acesso eficiente aos recursos energéticos, a gestão das bacias hidrográficas dos rios internacionais, a política de imigração, a defesa e regulação do sistema financeiro e a capacidade de combater os paraísos fiscais (e com ele o combate à corrupção e lavagem de dinheiro), justificam a necessidade de mais Europa. A alternativa à construção europeia, não é apenas a incapacidade de lidar com estes problemas, é a decadência e a irrelevância geopolítica da Europa e a instabilidade nas suas fronteiras, seja no Kosovo de ontem ou na Croácia de hoje em que basicamente quem decidiu foram as grandes potências: EUA e Rússia.

2. Para que a Europa exista como comunidade política é necesário construir uma cidadania europeia. Isso levará décadas a construir e há vários instrumentos para promover essa cidadania. A livre circulação de estudantes (o programa Erasmus tem sido dos maiores motores da cidadania), a existência de media europeus (existe a Euronews, mas nenhum jornal comum que seja lido por europeus com assuntos europeus), a existência de prestações sociais que entrem diretamente na conta bancária dos cidadãos europeus, com identificação clara da sua proveniência. No campo político, a cidadania constrói-se com a maior legitimidade democrática das suas instituições. Apesar de o Presidente da Comissão não ser eleito pelos cidadãos europeus, o facto de as grandes famílias políticas europeias terem candidatos a Presidente da Comissão, de haver debates entre eles e de percorrerem os países da União, é um pequeno passo no caminho da cidadania. Auscultar os cidadãos sobre grandes temas europeus, como a Holanda, a Dinamarca e a França fizeram (mas Portugal não) também é uma forma de dar informação e poder aos cidadãos na construção europeia.

3. A opção fundamental numa altura de decisões europeias é precisamente do projecto a construir no longo prazo. A federação europeia do futuro será decerto sui generis, mas temos exemplos de grandes espaços económicos e comunidades políticas que souberam construir-se apesar de todas as diferenças internas. O exemplo dos EUA é, a este título, relevante. Primeiro, na sua gestação inicial houve uma mutualização da dívida dos Estados altamente endividados, e isso deve-se à genialidade de Alexander Hamilton. Convém relembrar que essa mutualização, que hoje é considerada por tantos como impossível ou indesejável, foi a chave do sucesso da construção americana, como bem nos tem recordado Viriato Soromenho Marques. Hoje, o orçamento federal americano representa cerca de 25% do PIB, que contrasta com um irrisório 1% do Orçamento da União Europeia, ainda por cima parcialmente gasto em excesso em políticas ineficientes (política agrícola). Hoje, a grande maioria dos Estados dos EUA têm, nas respectivas constituições, uma regra de orçamento equilibrado, algo semelhante àquela que está inscrita no chamado Tratado Orçamental. O modelo americano actual é assim o de uma federação em que o nível federal tem um peso considerável, exerce a função estabilização da política económica, pode ter, e tem, défices consideráveis, exercendo a função redistributiva através quer de transferências diferenciadas para Estados, quer de programas de prestações sociais para as famílias mais carenciadas. Nos EUA o cheque chega à conta bancária dos cidadãos. É assim necessário um orçamento significativo da União (5% do PIB faria toda a diferença) com funções redistributivas. O tratado orçamental é demasiadamente rígido e deveria ser tecnicamente melhorado. Porém, politicamente é muito dificil de mudar, pelo que o avanço só pode ser conjugar o tratado orçamental com maior integração política, maior orçamento europeu, e uma união bancária com um banco central europeu que, à semelhança da reserva federal americana, tenha um mandato extendido ao crescimento e emprego e não apenas à estabilidade de preços.

4. Na campanha para as europeias o tema do tratado orçamental estará necessariamente em cima da mesa. Aliás, consta de vários programas de partidos que se apresentam às eleições, uns no sentido do apoio, outros da reforma, outros da rejeição, outros na defesa de um referendo. Mas o que diz o tratado? Essencialmente duas regras. A primeira, que o objectivo de médio prazo para as contas públicas é o quase equilíbrio estrutural (-1% se o rácio da divida no PIB for inferior a 60% e -0,5% se estiver acima, que é o caso português). Note-se que isto não significa que o famoso défice orçamental tenha que ser de 0,5% no médio prazo. Depende de a economia estar ou não no seu nível de tendência. Se houver muito desemprego, o tratado aceita que o défice seja superior a 0,5%. A segunda regra, é que quando a dívida é excessiva (maior que 60% do PIB) há que reduzir esse excesso ao ritmo de um vigésimo por ano (algo que vários países dificilmente conseguirão).

5. O argumento que muito se tem ouvido, e que é falso, é que o tratado implica austeridade para sempre. Se por austeridade se entendesse contas públicas, em termos médios, quase equilibradas, sim. Mas com o conceito usual - uma política restritiva de cortes de despesa e/ou aumentos de impostos -, não. As políticas restritivas são necessárias até se atingir o quase equilíbrio estrutural das finanças públicas (2018, 2019?) e de modo a respeitar o critério de redução da dívida. A partir daí não será necessária mais austeridade. Significa isto que Portugal necessita de políticas de austeridade até 2019, o que, mesmo assim, seria dramático? Depende sobretudo da capacidade de crescimento da economia e da possibilidade de redução dos juros da dívida, qualquer que seja a forma que esta assuma (mutualização, renegociação ou reestruturação). A descida dos juros é assim crucial para aliviar a austeridade, e por isso houve um manifesto dos 74 e uma petição à Assembleia da República, que será apreciada no dia 29 deste Mês.

6. Aquilo que o governo apresenta no documento de estratégia orçamental (DEO) e que vai condicionar o último orçamento de Estado ordinário (OE2015) é a única estratégia possível? As restrições das nossas obrigações europeias (que continuarão mesmo após o “dia da libertação”) são fortes, e a margem de manobra não é muito grande, mas existe. É possível uma estratégia orçamental diferente mesmo antes da desejável renegociação da dívida que só poderá ser feita no quadro europeu.

P.S.: A apresentação dessa estratégia será feita numa conferência do IPP a realizar no ISEG amanhã pelas 17h e consta de estudo que estará na página do Instituto de Políticas Públicas (www.ipp-jcs.org).

Professor do ISEG/UTL
 

   

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