“O que temos para oferecer às pessoas para conseguirmos atrair e fixar as melhores?”

Dois funcionários públicos falam dos últimos três anos e dos receios quanto ao futuro.

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Leonel de Sousa trabalha há dez anos no Estado Miguel Manso
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António Nogueira Lemos espera reformar-se no final do ano Miguel Manso

Duas gerações que todos os dias se cruzam nos corredores dos serviços públicos, com visões diferentes, mas que partilham os receios em relação ao futuro.

António Nogueira Lemos, 58 anos e 30 de função pública, está à espera de se reformar antecipadamente no final deste ano. Sente-se desaproveitado e cansado de uma administração “congelada” e de cortes que parecem não ter fim. Sairá sem amargura, mas se os filhos decidissem trabalhar na função pública não os incentivaria. Leonel de Sousa, 35 anos, e uma década de trabalho no Estado, está dividido entre a “frustração” de receber um salário líquido equivalente ao que recebia há dez anos e a recompensa de trabalhar num sector que tem grandes repercussões na vida de todos.

António Lemos é funcionário público há três décadas, metade das quais exerceu funções de chefia em vários organismos públicos, e foi também vereador na câmara de Aveiro. Desde 2011, é auditor no serviço de auditoria na Autoridade Tributária, lugar que ocupou depois de ter deixado a direcção do Instituto de Segurança Social.

As alterações constantes ao Estatuto da Aposentação, as prometidas mudanças na tabela de remunerações e nos suplementos levaram-no, em 2012, a meter o pedido. Para essa decisão contribuíram “um grande cansaço” de uma administração que está “congelada”, que nem sempre aproveita os recursos que tem e cortes que parecem não ter fim.

Quando em 2011 foram decididas as primeiras reduções salariais, António Lemos exercia um cargo dirigente e encarou-as como uma medida de curto prazo e que poupava os salários mais baixos. “Reconheço que o nível de despesa tinha de diminuir”, nota.

Mas quando a seguir vieram a sobretaxa do IRS, a redução das deduções, o aumento dos descontos para a ADSE e, mais recentemente, o agravamento dos cortes salariais percebeu “que não iria ter fim” e isso “é desmotivante”.

Licenciado em direito, concorreu para as Alfândegas com 28 anos. “Foi uma decisão consciente e uma opção clara de vida”, conta ao PÚBLICO, “na altura trabalhava por conta própria e sentia a necessidade de me enquadrar numa organização e de ter uma vida mais estável. Tinha acabado de ser pai”.

Foi dirigente em vários serviços, mas não tem qualquer dúvida em afirmar que “existe um problema com as chefias no Estado”. “Confunde-se um bom técnico com um bom dirigente. Na maioria dos casos perde-se um bom técnico e ganha-se um mau dirigente”. Considera que a criação da CRESAP (Comissão de Recrutamento e Selecção da Administração Pública) vai no sentido correcto e concorda que tem de haver uma harmonização com o privado em determinadas áreas, “de forma gradual”.

O auditor reconhece que a função pública de 1984 e a função pública de 2014 teve grandes melhorias – “as pessoas são mais qualificadas e reduziu-se a pequena corrupção”, mas receia que os três anos de austeridade venham a ter consequências no futuro. Sai sem qualquer arrependimento e sem amargura. O único sentimento é a tristeza “por ver que o esforço de milhares de funcionários públicos foi desperdiçado”. Mas se algum dos dois filhos, que trabalham no sector privado, quisesse entrar agora na função pública “desmotivá-lo-ia”.

António Lemos considera “injusta” a imagem negativa que a sociedade tem dos funcionários públicos, mas que resulta da “desvalorização da relação com o público". “As pessoas certas não estão nos lugares certos” e isso não ajuda a melhorar essa imagem. Leonel de Sousa concorda que a reputação negativa associada ao funcionário público não tem, na maioria dos casos, razão de ser. O problema, refere, é que nem sempre as pessoas mais motivadas e mais bem preparadas estão em contacto com o público, naquela que é “a face visível da Administração Pública”.

Leonel Sousa fez o Curso de Estudos Avançados em Gestão Pública, a única porta de entrada para o Estado nos últimos anos. Depois de alguma experiência no sector privado como advogado, a decisão de trabalhar no público teve por base “duas utopias e uma realidade”: contribuir para mudar o país, a garantia de autonomia e independência e uma relação laboral “tendencialmente vitalícia”.

Passados dez anos diz que o paradigma mudou e a percepção desse emprego para a vida também mudou.

Fruto da sua formação no CEAGP, tem orientado o seu percurso dentro da administração por projectos e pelos resultados. E aí nota “uma grande diferença geracional”: quem tem entre os 20 e os 30 anos está mais focalizado nos resultados e não tanto no cumprimento de directrizes. O problema é que pouco tempo depois de ter entrado para o Estado foi confrontado, como milhares de trabalhadores, com cortes e com o congelamento das progressões e dos prémios. “A focalização nos resultados pressupõe mecanismos de recompensa. Motivar sem compensações monetárias, exige muita criatividade, a qual tem limites”, alerta.

Leonel de Sousa entende que é “frustrante” a ausência de perspectivas de carreira e a redução da remuneração líquida: “Se continuar assim por mais um ou dois anos terei de ponderar”. E a dúvida que, por vezes, o assola é a razão de ser de uma questão que se tem colocado: “O que é que temos para oferecer às pessoas para conseguirmos atrair e fixar os melhores?”

É por isso que, quando se pergunta se voltaria a fazer a mesma escolha de vida, as dúvidas surgem: “Se tivesse seguido o mesmo percurso no privado estaria muito melhor em termos financeiros. Mas há outras questões, como o reconhecimento, a repercussão do trabalho que fazemos e o servir o outro sem interesse pessoal directo”.

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