A crise de Lutero e a resposta de Roma

Roma vem recolocar o Homem como centro da sociedade e não como um mero instrumento da economia.

Na minha fugaz passagem pela Haia como embaixador fui, como é da praxe, cumprimentar os meus colegas. Vinha de Dublin, onde o serviço de saúde não se afirmava pela excelência. Tendo vivido largos anos em Bruxelas, onde, pelo contrário, a excelente e rápida assistência medida é um dos principais e mais apreciados confortos da cidade, esperava encontrar na Holanda um serviço equiparável.

Qual não foi pois a minha perplexidade ao ouvir os embaixadores que ia visitando advertir-me, sem que eu tivesse suscitado o tema, que em caso de uma urgência nesse campo me dirigisse logo a um hospital na Bélgica, pois o sistema de saúde holandês seria excelente para quem nele conseguisse entrar, mas de mui difícil e demorado acesso. Davam-me o exemplo de um jovem secretário de embaixada latino-americano que, após a sua mulher, com uma gravíssima crise, ter sido recusada em quatro ou cinco hospitais holandeses acabou, em desespero, por a levar para a Bélgica, onde finalmente foi assistida.

Nessa ronda visitei naturalmente o Núncio Apostólico, vizinho da nossa residência em Haia. Um bem-humorado e afável francês de uma família de Bordéus que passava férias na Figueira da Foz, de que me entreteve com divertidas recordações. No desenrolar da conversa diz-me, a certo ponto, com ironia e a sagaz sapiência da diplomacia vaticana, perante a minha divertida surpresa, “sabe, aqui na Holanda são todos calvinistas. Os calvinistas, os protestantes, os católicos e os ateus”.

Poucos dias depois participei num almoço dos embaixadores dos países da UE em casa do colega luxemburguês – também nosso vizinho, “na maior aldeia do Mundo”, como os habitantes da Haia gostam de a definir – com o Ministro da Saúde. Encontros que servem para os embaixadores melhor conhecerem os diversos sectores do país onde servem. No decorrer da conversa, alguém lhe perguntou por que motivo era tão difícil e penoso aceder, na Holanda, aos serviços de saúde. O Ministro, retomando a ironia que eu que ouvira ao enviado da Santa Sé, responde: “na Holanda somos todos calvinistas e pensamos que se alguém está doente é porque pecou. Por isso, antes de ser curado, tem de ser castigado e sofrer um bocado”.

Esta frase tem-me ocorrido diversas vezes ao longo desta crise com cuja cura a Europa não consegue acertar. E não consigo deixar de pensar que, nesta punição infligida aos países pecadores há uma reminiscência subliminar da guerra religiosa que traçou na Europa a fronteira entre o Norte da Reforma, impante do seu virtuosismo e não por acaso rico, e o Sul católico, ufano da sua prevaricação e não por acaso financeiramente vulnerável.

Receei mesmo que esta fosse a estocada final que a Reforma dava à ética católica. Temi que a moral reformista, não no seu original puritanismo religioso, mas na versão pervertida de Wall Street e dos donos do mundo à Tom Wolfe, a esmagasse perante a passividade, inconsciente ou cúmplice, de muitos católicos.

Mas Roma não dorme e das trevas ideológicas do “neoliberalismo selvagem”, onde nem a existência de sociedade se reconhece, quanto mais a atenção ao próximo, surge de Roma uma lufada de ar fresco e um vislumbre de luz pela voz inovadora do Papa Francisco. A denunciar, com uma lhaneza que desarma, a “economia que mata”, a adulação do lucro e do dinheiro como único valor que a tudo se sobrepõe, a idolatria do novo Bezerro de Ouro e o apostolado dos seus sacerdotes, que a espalham pela academia e pelos media.  

É verdade que na substância a mensagem do Papa não diverge da que Bento XVI transmitiu na encíclica Caritas in Veritatis. Mas a compreensão imediata da linguagem terra a terra que utiliza, o caminho alternativo que aponta como a evidência do bom senso, a re-humanização da sociedade que anuncia, são um atraente e fortíssimo antídoto à ideologia “financeirista” (não “economicista”) dominante que atrofia o mundo contemporâneo e nega todos os valores que marcaram a civilização europeia.

E confesso que também aqui não consigo deixara de pensar que esta resposta de Roma, que vem recolocar o Homem como centro da sociedade e não como um mero instrumento da economia que se oferece em sacrífico à divindade dos mercados e dos indicadores macroeconómicos abstractos é a versão século XXI da Contra Reforma. Esta, parece-me, mais próxima da mensagem original do cristianismo e talvez por isso mais poderosa e eficaz.

Embaixador reformado
 

   

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