O fim da crise e a sobrevivência do euro dependem de um novo salto na integração europeia

Durão Barroso “intergovernamentalizou” a Comissão Europeia quando o que é preciso é um novo momentum Delors, defende Guy Verhofstadt, o candidato dos liberais à sucessão do português

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Verhofstadt critica Durão Barroso: "Quando se tem o direito de iniciativa, porque é que não se usa?" Vincent Kessler /Reuters

Guy Verhofstadt, ex-primeiro ministro belga e presidente dos liberais no Parlamento Europeu – o terceiro maior grupo político – defende que é preciso dar um salto na integração europeia para gerar o crescimento económico necessário para a União Europeia (UE) sair da crise.

Em entrevista ao PÚBLICO, é taxativo: o sucessor de Durão Barroso na presidência da Comissão Europeia terá de ser um dos candidatos apresentados pelos partidos europeus e que incluem Verhofstadt, indicado pelos liberais, o luxemburguês Jean-Claude Juncker dos democratas-cristãos (PPE) e o alemão Martin Schulz dos socialistas (S&D)

É possível o Conselho Europeu [os líderes dos países da UE] escolher outro presidente da Comissão que não seja um dos candidatos dos partidos?
Não, porque senão podemos fechar as portas, será o fim da democracia europeia durante 20 ou 30 anos.

Mas legalmente é o Conselho Europeu que tem o poder de escolher o candidato...
Pois é, mas nós temos o poder de recusar. E nunca haverá uma maioria fora dos candidatos. É pelo voto dos cidadãos que vamos construir uma maioria e é essa maioria que vai eleger um presidente. Parece-me um sistema bastante são, porque serão os Estados e os cidadãos a decidir.

É verdade que há um acordo de maioria parlamentar para o próximo Parlamento em torno de uma aliança entre os dois maiores grupos políticos – PPE e S&D (que hoje têm, respectivamente, 275 e 194 deputados) – que o incluem a si como presidente do PE?
São rumores puros sem qualquer fundamento. Os dois grandes grupos terão a maioria, mas não será uma maioria estável para algumas decisões que precisam da maioria absoluta dos deputados – para isso seria preciso que todos os deputados estivessem presentes, o que nunca acontece, faltam sempre 50, 80, 100. Uma maioria também não pode depender de uma grande delegação nacional, porque senão essa delegação pode decidir sobre qualquer detalhe de um conteúdo. Se nós, os liberais, regressarmos ao PE com a mesma força actual de 80 deputados, seremos necessários para garantir uma coligação estável e depois veremos como correm as negociações. Porque não será o maior partido que terá automaticamente a presidência da Comissão. O que fizemos, os grandes partidos, foi lembrar algumas regras simples: o próximo presidente terá de ser um dos candidatos, terá de ter a possibilidade de ter uma maioria parlamentar e o maior partido terá o direito de começar a tentar formar essa maioria. O próximo presidente da Comissão será aquele que conseguir reunir essa maioria.

O seu cenário central será então uma maioria parlamentar formada pelos três maiores partidos: PPE, S&D e Liberais?
É uma possibilidade, mas dependerá da escolha dos eleitores. Mas em todo o caso o que eu tento fazer é estar na maioria. A política é estar numa maioria e ter uma influência sobre as escolhas que são feitas. No parlamento cessante ganhámos 90% dos votos porque estamos ao centro. Eu fiz o pacto de estabilidade (do euro) reforçado com o PPE. Mas reforcei a protecção da vida privada com a esquerda. Depende do assunto.

Segundo as sondagens, os liberais não conseguem garantir  nenhuma maioria nem à esquerda nem à direita, estarão sempre dependentes de uma aliança entre os dois grandes....
Mas eu lancei listas pró-europeias por toda a Europa, o que não está reflectido nas sondagens. O que nos dá entre 60 e 110 deputados. Há uma enorme incerteza nestas eleições. Estou a desenvolver um movimento pró-europeu, liberal, centrista e reformador na Europa que defende que não é fechando-se atrás das fronteiras nacionais que se vai conseguir resolver os problemas da Europa de amanhã. Pelo contrário, é preciso dar um salto na integração europeia e utilizá-lo como uma espécie de motor para resolver a crise económica na Europa. É com uma integração muito mais profunda que se vai criar uma massa crítica para sair da crise, não é atrás das fronteiras.

Que diferença tem o seu programa face ao de Juncker e Schulz?
Há várias grandes diferenças. Os conservadores dizem que com um pouco de austeridade se vai sair da crise, bate-se no fundo mas sai-se da crise. Só que quando se mergulha numa piscina, se se bate no fundo morre-se por isso é preciso ter cuidado. Os socialistas dizem que para sair da crise é preciso contrair novas dívidas que se pagam mais tarde com o crescimento económico. Os conservadores estão no poder em metade dos governos na Europa, os socialistas na outra metade e os dois estão juntos na Alemanha. E só há crise na Europa, em mais sítio nenhum do Mundo. Para nós, estas são receitas do passado que não funcionam. O que nós dizemos é que é preciso uma alternativa. É preciso disciplina orçamental, claro, mas para sair daqui é preciso dar um salto na integração e usá-lo como um motor de crescimento. Foi o que Jacques Delors fez nos anos 1980 quando lançou o mercado interno sem fronteiras que nos permitiu ter crescimento económico durante 10, 15 anos.

Qual seria o seu mercado interno?
Cinco pontos. Primeiro, a união bancária, que é preciso completar para permitir a retoma do fluxo do crédito dos bancos para a economia real, que continua a não existir. Segundo, criar um mercado unificado de capitais, porque é uma loucura manter mercados nacionais porque não têm a liquidez necessária para fazer baixar as taxas de juro. Começar uma pequena empresa na Eslovénia, custa os olhos da cara. E se eu tiver uma propriedade em Portugal não posso usá-la para ter crédito na Bélgica para começar uma empresa. É uma loucura que não existe em mais lado nenhum, excepto aqui porque temos mercados separados. Terceiro: criar um mercado energético. Como não temos, pagamos a energia a um custo exagerado. Temos uma enorme desvantagem face aos Estados Unidos precisamente porque não temos esta comunidade energética ao nível europeu com uma infraestrutura comum que nos torne menos dependentes da Rússia e de outras partes do Mundo. Quarto: o mercado digital e de serviços. O telemóvel é o único sector com fronteiras na Europa, porque quando se passa a fronteira entre a Bélgica e a França é impossível telefonar durante 20 quilómetros. É precisamente por isso que todas as grandes empresas tecnológicas e de internet são americanas, porque não temos esse mercado unificado. E quinto, continuar com as infraestruturas financiadas por project bonds (empréstimos europeus para projectos específicos) de que se falou tanto mas nunca arrancaram. Em todos estes sectores é preciso criar de novo um momentum Delors.

Não falou de eurobonbds (mutualização de dívida) que foi um dos seus grandes combates durante muito tempo...
Falei indirectamente quando falei de um mercado unificado de capitais, o que implica um fundo de amortização da dívida como o defendido pelos “sábios” alemães com uma mutualização da dívida acima de 60% do PIB. Seria uma boa ideia porque permitiria não apenas uma diminuição dos juros a pagar pelos Estados, mas igualmente um verdadeiro instrumento para penalizar os que não fazem as reformas estruturais necessárias, porque não poderão participar.

Há um debate em Portugal sobre uma reestruturação da dívida, sobretudo em termos de reescalonamento dos reembolsos, acima dos 60% do PIB....
Não é uma ideia nova, já foi feita em vários países incluindo na Bélgica nos anos 1990, só que não resolve o problema, ajuda a adiar o reembolso, mas não pode substituir as reformas estruturais e a consolidação orçamental em profundidade que são necessárias. Mas o que é preciso é abrir, em paralelo, uma estratégia de crescimento que não temos na Europa. Esta Comissão Europeia não o fez. Tive 10, 20 discussões com Durão Barroso sobre a questão em que lhe disse para apresentar as propostas necessárias, nomeadamente sobre a governação económica. Há uma série de planos, planos, planos, mas a Comissão não avança com as propostas legislativas.

Porquê?
Porque a Comissão segue outro método que é telefonar primeiro a Berlim e depois a Paris e só depois de receber a luz verde dos dois é que avança. Enquanto que eu digo que a Comissão, enquanto única instituição com direito de iniciativa, tem a obrigação de apresentar as propostas legislativas ao Conselho e ao Parlamento para os obrigar a pronunciar-se. Só se pode dar um salto na integração pondo as propostas na mesa. Claro que será sempre preciso fazer acordos, mas esses acordos serão muito mais ambiciosos do que se se tiver de se esperar pelo acordo prévio dos grandes países. Mas a Comissão não o faz porque diz que sem o acordo dos grandes Governos não é útil avançar com as propostas. É o intergovernamentalismo puro. Barroso aceitou que quem lidera é o Conselho. E por causa disso, sobre a governação económica, não avançámos nada em dois anos. Quando se tem o direito de iniciativa, porque é que não se usa? Foi o que Delors fez com o mercado interno, é preciso fazer exactamente o mesmo com a união bancária, governação económica e o mercado unificado de capitais. Há quem me diga que estou a sonhar, mas não estou, tudo isto está escrito nos relatórios do FMI, da OCDE e do Tesouro americano:  a Europa tem de dar um salto em frente na integração porque senão a moeda única não é viável.

Segundo as sondagens os partidos extremistas, populistas, nacionalistas poderão eleger 100 deputados (em 751). Assusta-o?
Veremos. Em todo o caso é preciso contrariá-los, desenvolvendo uma visão pró-europeia, que tem faltado até agora. O discurso das forças pró-europeias tem sido paz, paz, paz, o que não é uma justificação convincente para os jovens porque como nunca conheceram a guerra, não conhecem a paz. Dizem que a paz é muito bonita mas será que vão ter trabalho, um futuro? Ou vão ter de imigrar? É isto que preocupa os jovens e é a isto que é preciso dar respostas. Se encontrarmos as respostas, acredito que a maioria das pessoas quererá continuar esta aventura europeia.

Que poder poderão ter estes extremistas? Bloqueio ou só barulho?
Sobretudo barulho. Bloquear em princípio não, mas isso não é razão para dizer que não é um problema. É preciso explicar aos cidadãos que o que estas pessoas dizem é mentira, e que todos os problemas que enfrentamos – alterações climáticas, desemprego, crise financeira, produtos tóxicos dos Estados Unidos, imigração do Norte de África – são problemas que só podem ser resolvidos ao nível europeu. É uma falácia pensar que poderão ser resolvidos se os países se fecharem atrás das fronteiras nacionais. É o que [os extremistas] dizem e as pessoas pensam, ‘pois, antes é que era bom’ quando é precisamente o contrário que é preciso fazer. As pessoas dizem que já não têm soberania e é verdade, mas essa soberania não pode ser recuperada ao nível nacional, mas europeu. Só ao nível europeu é que poderemos negociar com os chineses, com os americanos sobre a nossa vida privada, e dizer aos russos ‘aí não entram’. Os que dizem que não podemos perder a nossa soberania nacional vivem noutro mundo, porque já a perdemos no mundo globalizado.

O que é que correu mal nos programas de ajuda a Portugal, Grécia, Irlanda?
Faltou sobretudo uma estratégia de crescimento ao lado da disciplina orçamental. No caso da Grécia que conheço melhor do que Portugal, houve uma abordagem puramente aritmética: fixava-se a percentagem [do défice orçamental] a atingir, mas a forma de a alcançar era indiferente. Moderação salarial, aumentos de impostos ou reformas estruturais era a mesma coisa desde que se atingissem os valores. Só que, no caso da Grécia, o problema fundamental era uma crise das estruturas, uma crise de um sistema clientelista, um mercado que não é aberto, com muitas profissões ainda fechadas, com um sistema público pesadíssimo, sobretudo ao nível bancário, são todos bancos públicos que ainda por cima financiam os grandes partidos políticos – Nova Democracia e Pasok – sem vergonha nenhuma. Tudo isso fez com que a moderação tenha sido feita sobre os pequenos salários e os aumentos de impostos sobre as pequenas e médias empresas, o que agravou a crise em vez de a resolver. O problema não está resolvido, não há transmissão de crédito para a economia. Se há uma crítica a fazer é que a troika (de credores internacionais) deve ter um papel técnico e não político e que a Comissão Europeia tem de ser a garante de medidas estruturais e não de medidas puramente aritméticas, como se fez no caso da Grécia e de outros países.

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