O “capitão” que perseguiu o Atlântida até ao fim

Um intermediário que teve nas mãos um contrato de milhões entre duas empresas do Estado, um armador assassinado em circunstâncias trágicas, uma razão política mais poderosa do que a razão económica e uma miragem de rentabilizar o Atlântida em águas quentes no Inverno. Tudo isto anda à volta do navio polémico e dos seus estaleiros agora extintos. O PÚBLICO consultou relatórios oficiais, pareceres técnicos e jurídicos, falou com políticos, gestores, uns retirados, outros no activo. É um rosto da gestão do bem público em Portugal.

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Paulo Ricca/Arquivo

De 2005 a 2009, o engenheiro naval João Moita trabalhou para a construção do Atlântida como agente e intermediário. Não como um mero intermediário, pois era o elo de ligação do armador com os projectistas russos que vieram pela sua mão para um negócio de 57,9 milhões de euros. Procurou mesmo comprador para o barco depois de, em 9 de Abril de 2009, os açorianos da Atlânticoline terem rompido o contrato com os estaleiros de Viana. Também trabalhou para os ENVC [Estaleiros Navais de Viana do Castelo], a cuja privatização fracassada concorreu em 2012.

E terá continuado a fazê-lo. Contactado várias vezes pelo PÚBLICO nas últimas semanas, Moita escusou-se a prestar declarações até à conclusão do concurso internacional para a venda do ferry e continuou indisponível desde então. Na passada quarta-feira, último episódio da saga do Atlântida, foram conhecidos os candidatos à sua compra: a Douro Azul, os holandeses Roelofs Beheer/Chevalier Floatels, com intermediários espanhóis, e a Thesarco Shipping da Grécia, da qual se desconhece até agora quem intermedeia.

Em 24 de Outubro de 2005, pouco depois da sua constituição como holding pública regional para o sector marítimo e portuário, a Antlânticoline celebrou dois contratos com a Sociedade de Consultores Marítimos, Ltd (SCMA), da qual João Moita é sócio-gerente. Um, em vigor até 15 de Fevereiro de 2006, para o fornecimento de documentação do projecto preliminar para a construção de quatro navios, incluindo o Atlântida, que a SCMA subcontratou aos russos da Petrobalt, Ltd. O acordado estipulava diversos aspectos: elaboração da versão preliminar do desenho de arranjo geral, secção mestra, especificações técnicas, lista de fabricantes de equipamento, cálculos hidrostáticos preliminares e plano geométrico preliminar, realização de testes de tanque, cálculo de vibrações e ruído, apresentação da versão final dos documentos, nomeadamente desenho de arranjo geral e especificação técnica. Por estas tarefas, foram pagos 322900 euros, sem IVA, por ajuste directo.

Outro para a prestação de serviços de consultadoria na construção dos navios Atlântida e Anticiclone. As tarefas encomendadas incluíam a análise de dados sobre os portos dos Açores, preparação das especificações técnicas para os três tipos de navios (dois gémeos de 60 metros de comprimento, um de 90 e o último com 40 metros) e respectivos desenhos de arranjo geral, elaboração do programa de concurso, caderno de encargos e avaliação das propostas. O estipulado, por ajuste directo, referia o pagamento de 2800 euros mensais (sem IVA), mais despesas de deslocações e pareceres técnicos. Este contrato foi actualizado em 1 de Janeiro de 2007, por um prazo de seis meses. Por ajuste directo foi então estabelecido um valor mensal de três mil euros, sem IVA, a que se somam despesas de deslocação e o pagamento de pareceres técnicos.

Em 25 de Outubro de 2006, menos de um mês depois de ficarem com a construção dos dois ferries, os ENVC, controlados pela Empordef (holding pública das indústrias de Defesa) recorrem à irlandesa Portbridge Engineering Limited, cujo agente em Lisboa é, também, João Moita, para fazer uma encomenda aos russos da Petrobalt. Em causa, estavam 1,69 milhões de euros para a realização do projecto básico e o desenvolvimento do projecto do Atlântida, e um contrato de 350 mil euros para o projecto básico do Anticiclone, pois neste último caso os estaleiros assumiram o desenvolvimento do projecto.

Em 22 de Junho de 2007, os estaleiros de Viana celebram com a SCMA um contrato de representação para a promoção e celebração de contractos de reparação de navio de qualquer tipo entre a ENVC e potenciais clientes. Deste modo, a SCMA, cujo sócio gerente é João Moita, manteve relações comerciais simultâneas com o armador Atlânticoline e o construtor dos navios ENVC, entre 25 de Outubro de 2006 e 22 de Junho de 2007.

Em 15 de Outubro de 2009, como presidente do conselho de administração da FirstLink, João Moita mantém contactos com uma empresa da Estónia, para encontrar comprador para o Atlântida, já recusado pelos Açores. Na calha estavam negociações com o Governo de Havana através de uma companhia pública cubana.

Se a empresa SCMA e o especialista João Moita aparecem como incontornáveis em todo o caso do Atlântida e dos estaleiros de Viana, dada a sua presença no mercado português naval, considerado pequeno, a auditoria conjunta da Inspecção Geral de Finanças e da Inspecção Geral de Defesa Nacional de 13 de Julho de 2009 não deixa de fazer reparos.

“Quanto à intermediação da empresa Portbridge (cujo agente em Lisboa é a SCMA) neste negócio, considera-se que os motivos da sua presença não são inequivocamente inteligíveis”, assinala. Os auditores estranham o facto dos estaleiros, que já tinham relações comerciais com os russos, terem recorrido à Portbridge (sediada na Irlanda e representada em Lisboa pela SCMA) para celebrarem contratos com a Petrobalt. Tanto mais que, na auditoria, é referido que no contrato entre o armador e os estaleiros “ficou logo formalizado que a Portbridge subcontratava todos os serviços à Petrobalt e que os contactos seriam estabelecidos directamente entre esta e a ENVC”.

Pelo que põem em dúvida a necessidade do envolvimento da companhia irlandesa representada em Lisboa por Moita. “Para além da intermediação da Portbridge neste negócio se apresentar munida de fraca justificação, foi também evidente que o recurso à Petrobalt visou ‘satisfazer’ uma exigência /vontade do Armador, conforme se encontra escrito em acta do Conselho de Administração”. Esta questão foi abordada nos trabalhos da comissão de inquérito da assembleia legislativa regional dos Açores, mas não consta de qualquer dos 26 pontos de conclusão.

A contratação do projectista russo foi também posta em causa, por outros motivos, pelo relatório técnico de Carlos Guedes Soares, professor do Instituto Superior Técnico, realizado em Agosto de 2009 a pedido do presidente dos estaleiros de Viana. Considera o especialista que a Petrobalt não tinha experiência concreta naquele tipo de navio. “A actividade do projectista (Petrobalt) contratado pelo armador (Atlânticoline) e depois subcontratado pelo estaleiro tem estado ligado essencialmente ao projecto de maquinaria de sistemas e ao desenvolvimento de projecto de casco para a produção, em navios de carga (…) e rebocadores”, salienta Guedes Soares. “Na área do projecto de navios de passageiros apenas dois projectos concretizados, um navio de rio e o ‘Lobo Marinho’ (o ferry que liga o Funchal a Porto Santo).”

Já em Agosto de 2012, a Atlanticeagle Shipbuilding, controlada em 80 por cento do capital pela FirstLink, de que Moita é presidente do Conselho de Administração, é uma das quatro concorrentes que passa o crivo governamental quando no horizonte do executivo de Pedro Passos Coelho ainda estava a privatização dos ENVC. E, ainda recentemente, em 14 de Setembro passado, a FirstLink passou a deter 33% dos estaleiros do Mondego.

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