A actualidade do 25 de Abril

O pessimismo que reina em Portugal contrasta com o enorme interesse que a transição portuguesa desperta nos países que lutam por um sistema que respeite a liberdade e a vontade dos cidadãos.

Na Tunísia, por ocasião dos eventos que marcaram a adopção da constituição democrática, muitas foram as referências à transição portuguesa e ao modelo político saído da Assembleia Constituinte de 1976.

A vaga democrática desencadeada pelo 25 de Abril de 1974 inundou, nos anos 80, a América Latina, passando na década de 90 para a Europa Central, para África e para a Ásia; nos primeiros anos deste século estagnou na tragédia iraquiana e ressurgiu, no início desta década, no Mediterrâneo – e o interesse pelo modelo português cruza todas estas experiências. No importante livro sobre a transição portuguesa, The Making of Portuguese Democracy, Keneth Maxwell escreve que a força da democracia portuguesa resulta do facto de ter “nascido da luta”. Só voltando a 1974 e 1975, à dupla luta contra o velho autoritarismo da direita e contra projectos autoritários da esquerda radical, se pode compreender as características específicas da democracia portuguesa – e que estão na origem de alguns dos seus actuais bloqueios.

A questão mais relevante no Sul do Mediterrâneo é o próprio processo, como ultrapassar a polarização entre islamitas e liberais, entre religiosos e laicos. No Egipto, foi esta incapacidade que levou ao fracasso da transição; na Síria, esta é a questão que divide a oposição, permitindo a Assad manter-se no poder.

Há 40 anos, também Portugal viveu uma gravíssima crise que polarizou a sociedade e deixou o país à beira da guerra civil. A transição foi bem-sucedida porque foi possível criar um consenso amplo entre todas as correntes democráticas, da esquerda à direita, incluindo sectores militares. Na memória dos dirigentes democráticos, nomeadamente de Mário Soares, estavam os erros da Primeira República portuguesa, que alimentou uma questão religiosa e alienou muitos católicos. Em 1975, o ataque contra a emissora católica Rádio Renascença por forças aliadas do PCP desencadeou a revolta dos católicos do Norte, que reforçaram o movimento popular liderado por Mário Soares e Sá Carneiro. Se em Portugal não era possível construir um regime contra os católicos, por maioria de razão se pode dizer que no Mediterrâneo-sul não se pode construir a democracia contra os muçulmanos e as forças em que se revêem.

Decisiva foi a aliança entre o PS, o PSD e os “Capitães de Abril” (à época, difícil de compreender fora de Portugal, sobretudo nos Estados Unidos, perante a pouca simpatia dos militares pela NATO). A necessidade de travar a polarização foi ainda mais longe, com a inclusão no processo político de todas as forças, mesmo aquelas, como o PCP, que se opunham à consolidação de um sistema democrático. Teve razão Melo Antunes quando, no 25 de Novembro, depois da derrota dos militares radicais, afirmou que o PCP era indispensável à democracia portuguesa, travando os que pediam a sua ilegalização. Sabemos hoje perfeitamente que a ilegalização do PCP teria não só colocado na clandestinidade milhares de portugueses, como teria reinstalado a censura e os tribunais políticos. A liberdade é para todos ou não é para ninguém. Esta lição foi violentamente aprendida pelos liberais egípcios que pediram a ilegalização dos irmãos muçulmanos: hoje são presos, estão proibidos de se manifestar e são alvo da mesma censura que vitima a Irmandade Muçulmana.

O interesse pela transição portuguesa abarca muitas questões, como a necessidade de garantir a segurança dos cidadãos, em paralelo com as reformas do sector de segurança, e se normalizam as relações político-militares, um processo que, no caso português, foi muito longo.

A emancipação das mulheres, com a garantia de direitos iguais, a lei do divórcio e a despenalização do aborto são conquistas maiores do 25 de Abril. Esta desconstrução de um sistema patriarcal, comum às duas margens do Mediterrâneo, é um importante ponto de diálogo, à semelhança de muitos outros, como a saúde ou a segurança social.

Se cada processo de transição é singular e determinado, em última instância, por factores internos, é certo que há condicionantes externos de suma importância: em Portugal, a polarização reflectia a Guerra Fria. Foi crítico o apoio da Europa, nomeadamente de líderes socialistas como Olof Palme, Willy Brandt e Helmut Schmidt, primeiros-ministros durante a crise. A importância das fundações alemãs na consolidação de partidos democráticos em Portugal desperta muito interesse, mas é de muito difícil repetição no Norte de África, onde, fruto da prevalência do nacionalismo como ideologia dominante, qualquer acção externa é rotulada como ingerência.

Para muitos portugueses, as comemorações do 25 de Abril têm um sabor amargo, esmagadas pela crise económica e social e politicamente marcadas pelo debate sobre a melhor forma de resolver o problema da dívida, retomar o crescimento e vencer o desemprego.

 O entusiasmo pela transição portuguesa que existe nos países onde hoje se luta pela liberdade contrasta com uma estranha nostalgia do passado ditatorial que emerge em Portugal, onde, em consequência da crise social e por desconhecimento, se olvida a opressão colonial do “orgulhosamente sós”, se enaltece o “pobrezinhos mas honrados” e se branqueia a corrupção e a cunha.

Na dialéctica da História, também os portugueses têm hoje que aprender com Constituições como a tunisina, que procuram fórmulas que garantam uma associação mais estreita dos cidadãos aos processos de decisão política. No pós-25 de Abril, em 1974 e 1975, a hegemonia dos partidos no processo político foi crucial para a derrota das correntes populistas e autoritárias; nos nossos dias, porém, é um entrave a uma democracia mais participativa – e a participação é uma exigência das revoluções democráticas do século XXI.

Director de Projectos no Arab Reform Initiative (ARI)

 

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