A rua dos móveis é cada vez mais de comer

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A Rua da Picaria era, por tradição, a rua dos móveis do Porto. Durante muitos anos, era ali que se concentravam as lojas recheadas de mesas e cadeiras, camas e cómodas, onde a gente da cidade e arredores se abastecia. Na verdade, durante muito tempo, parecia que não havia outro motivo para ir ali, a menos que se procurasse um móvel novo para a casa ou, eventualmente, uma moldura diferente para colocar um novo quadro ou fotografia na parede. Mas, hoje, a Picaria é muitas outras coisas e dos tempos áureos dos móveis restam apenas algumas lojas.

Comprei a minha primeira cama na Rua da Picaria. Ou melhor, compraram-ma. Eu sabia o que queria — uma estrutura simples, com gavetões de arrumação e nada de ornamentos. A família, que por ali andava em passeio enquanto eu trabalhava, ligou-me, a dizer que encontrara o que eu procurava numa das lojas da Picaria e eu, mesmo sem ver a peça de mobiliário, pedi para fecharem o negócio. A cama mudou-se, entretanto, para o quarto que as visitas ocasionais ocupam, mas os gavetões continuam a dar imenso jeito.

Hoje, ainda se ouve o refrão “só se for na Picaria”, quando alguém procura, por exemplo, um banco de madeira ou substituir alguma cadeira antiga, mas a rua juntou-se ao ritmo de mudança que tem tomado conta da Baixa da cidade e abriu as portas a outras especialidades. Sobretudo de comer e de beber.

Descer a Rua da Picaria é passar, logo no ponto exacto onde ela começa, pela Champanheria da Baixa, pelo BaixaBurger (inquilinos relativamente recentes), mais à frente, e pelo clássico Ernesto, que já por ali anda desde 1968, agora nas mãos do filho do senhor Ernesto. A galeria Dama Aflita, especializada em ilustração e desenho, chegou em 2008 e desde o ano passado que tem a companhia, um pouco mais abaixo, do Serrote — uma antiga loja de móveis (lá está!) convertida em bar e galeria. 

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Em Junho de 2013, ainda experimentei algumas delícias da mercearia/espaço de degustação Bagus, mas hoje já não a encontro, depois de em Outubro ter anunciado que ia mudar de instalações. Agora, no mesmo espaço, está a mercearia (e casa de experimentar petiscos) Nabos da Púcara e, na vizinhança, abriu portas a loja e atelier de costura À Mão de Criar. Na Rua da Picaria, há agora onde comer sushi (Two:Su.shi), onde degustar tapas (Tasquinha dos Sabores) e até a famosa A Badalhoca (especialista em sandes de presunto) abriu uma espécie de sucursal. Vamos à Picaria espreitar móveis? Pode ser, talvez se encontre alguma relíquia perdida, mas vamos também comer qualquer coisa.

Ah, e já agora, enquanto lá está, olhe à sua volta e tente imaginar qual era a casa em que, segundo os dados do processo por adultério envolvendo Ana Plácido e Camilo Castelo Branco, o escritor mantinha a sua amante como “teúda e manteúda”. E, se tem interesse pela história política do país, saiba que foi na Rua da Picaria, no número 49, que nasceu o antigo primeiro-ministro Francisco de Sá Carneiro. E foi também naquela artéria que montou o seu escritório de advocacia. Em 2008, o actual proprietário do Ernesto recordava ao PÚBLICO como a rua se encheu de milhares de pessoas aos gritos, no dia em que Sá Carneiro morreu, a 4 de Dezembro de 1980. Gente que aguardava pelo comício que ele deveria dar no Coliseu e que se dirigiu para a sua morada, numa manifestação espontânea, quando se soube que o avião que o transportava caíra. A casa ainda pertence à família e, como tantos outros prédios da Baixa, só mostra a quem passa na rua a sua cara de pedra, mas esconde, nas traseiras, um jardim. Não há rua da cidade que não tenha os seus segredos.

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