Kurt Cobain e Dom Quixote

Este sábado passaram vinte anos sobre o suicídio de Kurt Cobain, o cantor do grupo rock Nirvana que marcou a geração de 1990. Durante anos a sua morte inspirou as mais diversas conjecturas.

Existe uma forma de arrumar o assunto: Kurt matou Kurt. E é isto. Mas também foi vítima das contradições da contracultura, da ética punk, da mitologia da juventude e da rebeldia à volta do rock e da forma camaleónica que o capitalismo tem de neutralizar tudo à sua passagem, quando adquire formas perversas.

A popularidade era um embaraço. Olhavam-no como guia. Mas ele sentia que estava tão perdido como os que queriam ser orientados. Nunca conciliou princípios e fama. O suicídio resolveu o impasse, antes que a integridade se fosse por completo. “Já não sinto paixão, por isso lembrem-se, é melhor apagar de uma vez que desaparecer aos poucos”, redigiu na nota que deixou.  

De alguma forma, renunciou. Era contra o novo-riquismo, o estabelecido, a gordura. O capitalismo, dizia ele, era a Gula. Mas ele acabou consumido. Em 1991, o rock precisava de sangue novo. Em quem apostar? Havia os Pixies, mas Frank Black era gorducho, e os Sonic Youth, muito artísticos e nova-iorquinos.

Ficavam os Nirvana. Restava injectar visibilidade e dólares no grunge de Seattle. E o negócio abateu-se sobre a cidade. Visualmente Kurt sobressaía. Como Jesus, loiro, ar torturado, mas também desleixado como qualquer roqueiro que se respeitasse.

Depois aconteceu Smells like teen spirit e em 1991 ser jovem era aquela canção, aquela rejeição de qualquer coisa inominável. De um dia para o outro, o desgosto formava o gosto. As palavras eram confusas, mas tornava-se num êxito da revolução adolescente. E Kurt foi tomando consciência que até ele, no auge da glória, não conseguia, não podia, mudar o estado das coisas.

De repente era uma personalidade respeitável. Alguém que as revistas desejavam para capa. Ele achava que podia subverter o sistema a partir do seu interior e aceitava ser capa, como fez para a Rolling Stone, impondo que tinha de vestir t-shirts com frases como: “corporate magazines still suck“. Mas a vida é mais complexa. A verdade é que ao aceitar essas condições a Rolling Stone acabava por dar provas de tolerância, liberdade e largura de espírito, conquistando mais público, graças à atitude de Kurt.

Às tantas sente-se Dom Quixote, a lutar no vazio. Pensava que podia infiltrar-se no sistema para o pôr em causa, mas este exibi-o, como num pregão: olhem para ele, indomável e insurrecto, comprem os discos e estarão a comprar uma atitude rebelde.

Kurt queria lutar sofregamente contra qualquer coisa. Mas acabou a lutar consigo próprio. Puxou de uma arma, mas apontou-a a si próprio. O último álbum dos Nirvana, In Utero, já era isso. A desistência. O isolamento. O casulo onde se resguardou das contradições de ser um rebelde milionário. Violando a ética punk. Os mandamentos da contracultura. O mito romântico do criador.

E acabou por sucumbir a outro mito: o de que para se ser autêntico e comprometido, consigo e com os outros, não se pode ser popular. Desconfiava de multidões. Receava diluir-se nelas. Temia perder a sua identidade. Mas apenas receia confundir-se com os Outros, nos seus pensamentos, gostos, atitudes ou posições, quem não tem bem definido quem é e o que quer.

Kurt poderá ter sido um dos últimos ícones do rock, no sentido da expressão de uma certa pureza. Mas também foi um dos exemplos mais claros de que para colocar em causa uma determinada realidade é preciso compreendê-la na sua complexidade, desmontando paradoxos, caminhando pelos interstícios, de contrário poderá ser-se engolido pelo que se queria transformar.

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