O historiador como personagem-chave

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Jacques Le Goff morreu ontem. Contava noventa anos. Levou uma vida cheia, feita de uma curiosidade sem limites, de laços bem cosmopolitas e de uma bonomia generosa, donde não faltaram os prazeres da mesa.

A sua obra de historiador e o seu exemplo de intelectual público permanecerão como um dos legados europeus mais importantes da cultura francesa no período posterior à Segunda Guerra. No momento da sua morte, examinar o seu itinerário como um autêntico problema – que requer análise crítica, bem como a formulação de hipóteses interpretativas – constitui a única forma de homenagear o historiador que ensinou a pôr a morte em perspectiva, num dos seus livros mais brilhantes – O Nascimento do Purgatório (1981, Estampa).

Nascido em Toulon, em 1924, integrou a Resistência francesa no final da Guerra. Uma “pseudo-resistência” – como gostava de recordar com uma irónica modéstia – porque limitada à recepção nos Alpes de armas e medicamentos enviados pela aviação inglesa. Em 1945, entrou na Escola Normal Superior de Paris, da Rue d’Ulm. Três anos mais tarde, já na qualidade de bolseiro, assistiu em Praga ao golpe comunista e pôs de lado as ilusões stalinistas. Beneficiou ainda doutras passagens, enquanto bolseiro e jovem professor, por Roma, Oxford e Lille. Pelo meio, passou o exame nacional da Agregação, onde chamou a atenção de Fernand Braudel. A desilusão final com os acontecimentos de Budapeste em 1956 levou-o a concentrar-se na investigação. Em 1956 e 1957, publicou dois pequenos livros: Mercadores  e banqueiros na Idade Média (Gradiva) e os Intelectuais na Idade Média (Gradiva). Foram estas as obras que lhe valeram o convite para integrar, em 1959, a antiga VI Section da École des Hautes Études. A partir daqui, colaborou com a célebre revista de história Annales. Graças a um programa de intercâmbio, alargou a sua experiência internacional à Polónia, onde fez amizade com Bronislaw Geremek.

Em 1962, foi promovido a Director de Estudos da École, numa área inovadora chamada  “Antropologia histórica do Ocidente Medieval”. Mas o mais importante é que em 1964 publicou A Civilização do Ocidente Medieval (Estampa). O doutoramento ficou por fazer, como sucedeu a tantos outros que se lhe seguiram. Uma tal transgressão, de um cargo sem título, só terá sido possível graças ao apoio – e ao poder – de Fernand Braudel, que à reverência pelas hierarquias preferiu as capacidades de inovação já demonstradas por Le Goff. No fundo, era mais uma vez o momento da École e da revista de história Annales demonstrarem a capacidade de inovar, através da construção de um diálogo entre história e ciências sociais, contra o conservadorismo e a simples reprodução dos saberes da Sorbonne e das universidades. Aliás, foi a mesma irreverência que levou, em 1972, Jacques Le Goff a assumir a presidência da instituição de que Braudel se retirou. Nessa posição permaneceu até 1977, quando foi substituído por François Furet.

Primeiro problema: só a capacidade para reinventar em novos moldes o diálogo entre a história e as ciências sociais podem explicar que Braudel tenha corrido o risco de chamar Le Goff, para mais tarde lhe suceder. Claro que existem aqui traços de autoridade e também de distinção, reconhecida na capacidade de transgredir, que são hoje muito difíceis de reproduzir ou mesmo de imaginar. Mas o reconhecimento que, ainda hoje, as obras de ambos merecem faz-nos pensar que o seu conteúdo tem sempre de prevalecer sobre os formalismos das hierarquias e de protocolos de certificação que não permitem a inovação.

Ao lado de Pierre Nora, Le Goff iniciou a direcção de projectos colectivos de vulto. Assim, surgiu, em 1974, o Fazer a história (Bertrand). Quatro anos depois, dirigiu a Nova História da cultura e das mentalidades (Almedina), com Roger Chartier e Jacques Revel – historiadores de uma “quarta” geração dos Annales. Em 1993, a sua dimensão cosmopolita levou-o a lançar uma nova colecção, desta vez de âmbito europeu, Fazer a Europa, publicada simultaneamente por cinco editores europeus. Em 1999, com Jean-Claude Schmitt, lançou o Dictionnaire Raisonné de l’Occident Médiévale (Fayard). Todas estas actividades colectivas não ficariam completas sem uma referência à sua participação activa, durante décadas, no programa de rádio Lundis de l'Histoire (France Culture), bem como à sua intensa actividade na redacção e direcção dos Annales.

O envolvimento em colectivos de historiadores tinha por na base o aprofundamento de um campo individual, por ele trabalhado e transformado: a história medieval do Ocidente. E se, em 1964, Le Goff começara por escrever uma obra de síntese sobre a Idade Média – lançando um desafio aos colossos que versavam sobre o mesmo tema de Marc Bloch (1939-40) e Georges Duby (1962) – foi no pequeno ensaio ou artigo que os seus dotes de historiador mais se afirmaram: Para um novo conceito de Idade Média (1977, Estampa), O Imaginário Medieval (1985, Estampa), História e Memória (1988, Edições 70), A Bolsa e a vida (1986, Teorema),  O maravilhoso e o quotidiano no Ocidente Medieval (1983 – Edições 70). Ainda sobre a Idade Média, será obrigatório aqui registar essa visão de conjunto fundada na biografia, de mais de um milhar de páginas, do rei Saint Louis (1996), uma outra sobre São Francisco de Assis (1999) e o estudo sobre a Lenda Dourada de Voragine (2011).

O inventário das obras colectivas e individuais de Le Goff suscita duas outras questões: qual a relação existente entre o campo aprofundado de afirmação de uma especialidade, tal como sucede em Le Goff com a história do Ocidente Medieval, e a força contagiante do seu autor em impor rupturas no campo mais lato da história geral, considerada esta no interior das ciências sociais e das humanidades?

Último problema: se assume foros de banalidade dizer que o frenesim de um historiador interessado no Purgatório se explica pelo enorme valor que dava à vida e à obra feita, mais difícil será avaliar o que era para Le Goff o ofício de historiador. A denúncia de Marc Bloch acerca da irresponsabilidade de historiadores e cidadãos que favoreceram, pelo seu silêncio, a expansão nazi tinha para ele  um valor exemplar. Ora, só através do trabalho, individual e colectivo de qualidade, o historiador poderia voltar a ser, segundo Le Goff, “uma das personagens-chave da nossa sociedade”, como aliás sucedera no século XIX (Reflexões sobre a história, Edições 70).

Historiador
 

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