“Caló” até pode jantar três vezes

Cada vez mais voluntários estão a distribuir comida nas ruas do Porto. Ressalta a falta de articulação entre eles. Unem-se, separam-se, sobrepõem-se, por vezes atropelam-se.

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Cada vez mais voluntários estão a distribuir comida nas ruas do Porto Nelson Garrido

Começam a alinhar-se antes das 19h, de pé, umas atrás das outras, no passeio da Rua Dr. Alberto Aires de Gouveia, em frente ao serviço de urgências do Hospital Geral de Santo António, no Porto. Amiúde, a fila dobra a esquina, acompanha a inclinação da Rua da Restauração, onde José Alberto Santos, conhecido por “Caló”, jargão dos ciganos da Península Ibérica, há tanto faz cama.

Todas as noites por ali pára gente a distribuir comida. Chegam em carros particulares ou com o nome de uma organização pintado num dos lados e ocupam parte do passeio ou do jardim do Carregal, um pouco acima. Uns esperam em silêncio, outros com alarido, por vezes tenso, por vezes divertido.    

– Ouvi dizer que vão acabar com as reformas – provoca “Caló”, ao ver aproximar-se um homem baixo, de cabelo espetado, irritadiço na sua ressaca, a quem chama “Gandalf”, personagem do autor britânico J. R. R. Tolkien.

– Ui! O que vamos comer? Aparas?! – retorque o outro, a fiar-se no que ouve, já a fazer carranca.

– Sabes o que te safa a ti? O Governo não valer um c..! – prossegue “Caló”, a divertir-se com o efeito alcançado.

– Votaste?!

– Não voto desde os 18 anos!

– Não votas porque és um irresponsável!

– E tu? Para que votas, se és reformado?

– Porque tenho direito!

– E vai às manifestações, o gajo! – mete-se José Maria, que dorme numa pensão ali perto, provocando uma gargalhada geral.

– E vou!

– Se estás reformado, vais fazer barulho para quê? – torna “Caló”.

– Eu luto pelo povo!

A conversa interrompe-se mal os três homens avistam uma carrinha branca a fazer pisca-pisca para a direita. De dentro dela saltam pessoas que se distinguem de todas as outras que ali estão por usarem coletes reflectores. Abrem as portas de trás e tiram tudo o que lá está dentro.

Umas montam banca onde a fila começara a formar-se e tratam de servir uma sopa de legumes. Outras montam outra banca um pouco acima. Hão-de entregar um café em copos de plástico e um kit (um refrigerante e três ou quatro croissants que agora mesmo enfiam em sacos de plástico).

Mais voluntários nas ruas
Noite após noite, em várias partes da cidade, a horas diversas, passam grupos de voluntários a oferecer uma sopa e/ou um prato principal e/ou um kit: Mercado do Bom Sucesso, Rua Júlio Dinis, Rua da Restauração, Jardim do Carregal, Avenida dos Aliados, Rua da Alegria, Praça da Batalha, Rua Sá da Bandeira, Rua Gonçalo Cristóvão.

Quem são estes, de colete reflector, que já serviram “Caló” e José Maria e agora servem os que se lhes seguiam? “Viemos do Amor Caseiro, fomos para o Amor-Perfeito e agora somos um grupo de amigos voluntários que apoia os sem-abrigo”, explica Alda Pires, 48 anos, empregada de cantina.

A crise – ou a consciência dos seus efeitos – está a levar mais voluntários para as ruas da cidade. Nesta vontade de bem-fazer, unem-se, separam-se, por vezes atropelam-se.O grupo sem nome aparece na Rua Dr. Alberto Aires de Gouveia sempre por volta das 21h de segunda-feira. Aquela era noite de míngua. Isso mesmo lhe assegurara quem espera na fila. Afinal, já ali vinha um grupo da CASA – Centro de Apoio aos Sem-Abrigo trazer sopa e primeiro prato. Ao deparar-se com estes, concentrados, a saciar quem esperava na fila, avançaram os outros para a Praça da Batalha.

Os voluntários da CASA foram para uma zona da cidade que sabiam a descoberto, mas há aqui quem fale na sua mudança como se fora uma birra. É como se não coubessem ambos na Rua Dr. Alberto Aires de Gouveia, em frente ao serviço de urgências do Hospital Geral de Santo António, no Porto. Como se não pudessem unir-se uns a dar uma sopa e um kit, outros o prato principal e o café.

“O que trazemos não dá para todos”, lamenta Carla Nunes, 40 anos, a voluntária que neste grupo concentra melhores contactos de angariação de bens alimentares. “Ficam alguns sem comer.” Pelo menos até por volta das 23h, quando na zona passarem os voluntários do Colégio do Rosário.

Não faz parte do Núcleo de Planeamento e Intervenção a Sem-Abrigo (NPISA) da Cidade do Porto, que junta 64 estruturas formais e informais. “Somos só um grupo de amigos que se junta para fazer isto”, justifica Carla Nunes, sem parar de preparar os kits. “Fazemos com boa vontade. É uma coisa que nos está no sangue.”

Uma ideia aproximada
Não se sabe ao certo quantos grupos se juntam para distribuir alimentos, onde, quando, o quê, com que qualidade. Há uma ideia aproximada: a pedido do NPISA, as rotas foram registadas pelo Grupo de Acção Social do Porto (GAS-Porto), uma organização não-governamental para o desenvolvimento.

No início do ano passado, a GAS-Porto contactou todas as organizações voluntárias que fazem parte do NPISA e perguntou-lhes se distribuíam alimentos, o quê, em que dia da semana saíam, por onde passavam, com quem se cruzavam. Já no Verão, pôs-se a verificar os trajectos: fez 27 rondas.

O que ressalta é a falta de articulação. Uns fazem um trabalho regular, com dia e hora certa. Outros aparecem quando calha, alguém que, de quando em quando, anda por aí a distribuir feijoada. Alguns querem matar a fome. Outros usam a comida como um meio de chegar a quem está a dormir na rua. Uns sentem-se parte da Estratégia Nacional para a Integração de Pessoas Sem-Abrigo. Outros nunca ouviram falar nela.

São ainda escassos os sinais de cooperação, como o protagonizado pelo Abraço na Noite, que alterna com outro grupo de voluntários, o Coração na Rua, aos sábados. Ora uns, ora outros, partilham uma refeição completa com quem quiser aparecer em três pontos estratégicos da cidade: Jardim do Carregal, Antas e Rua Júlio Dinis, esta última em parceria com o grupo Sol da Noite. Montam uma tenda e ali ficam, a conversar, a servir, mas também a jantar.

O mapa revela zonas a descoberto, como a Areosa, a Arca d’água ou Campanhã. Ninguém passa por lá, apesar de haver quem durma ao relento ou em edifícios devolutos. Noutras zonas, sobretudo na Baixa, sobrepõem-se os grupos de voluntários, de costas voltadas, a repartir comes e bebes.

O passeio em frente ao serviço de urgências do Hospital Geral de Santo António é uma das zonas mais frequentadas por estes grupos de formação mais ou menos espontânea. De vez em quando aparece alguém nunca antes visto. Ainda no sábado anterior por ali andara “um inglês a dar água”.

Tantas vezes “Caló” acaba de comer na Rua Dr. Alberto Aires de Gouveia e forma fila um pouco acima, na rua do Rosário ou no Jardim do Carregal. Não é caso único. Muitos o fazem. E nem constam na lista de 1377 pessoas em situação de sem-abrigo – 200 a 300 dos quais a dormir ao relento ou em prédios devolutos.

A fila dos que esperam por comida pode ter mais de cem pessoas. Há quem tenha habitação e vá engrossá-la. Por vezes, trazem crianças. No sábado, ali, no jardim do Carregal, comem 150 pessoas. Uns ainda estão a servir aí e já pára outro grupo na Rua Dr. Alberto Aires de Gouveia. Depois da meia-noite.

Por vezes, espera-se em vão
Liliana, 30 anos, sobressai na fila nesta noite. Está grávida de oito meses e meio. A menos que a mãe dela lhe ofereça comida, põe-se ali, com o namorado, primeiro numa fila, depois noutra. Já lhe aconteceu esperar em vão. “Fiquei aqui um ror de tempo à espera e não apareceu ninguém.”

O que preocupa voluntários como Fátima Lopes, da GAS-Porto, não é haver zonas nas quais param grupos na mesma noite, à mesma hora, a distribuir comida; é haver zonas de sem-abrigo que ficam sem distribuição de bens alimentares grande parte da semana. Falar de sobreposição, neste contexto, até lhe parece complicado, uma vez que uns levam sopa, outros prato principal, outros kits que as pessoas podem guardar para o pequeno-almoço ou para o lanche do dia seguinte.

O levantamento está a suscitar debate dentro do NPISA, coordenado por uma equipa técnica da Segurança Social. Um grupo, o ASA, já decidiu deixar de distribuir comida na rua e assumir outras tarefas – aliou-se ao Grupo dos Amigos da Rua para fazer a contagem de pessoas que dormem ao relento.

Nas reuniões com a Plataforma das Organizações Voluntárias, já todos ouviram a coordenadora perguntar-se se não será por haver tantos voluntários a distribuir comida na rua que há tanta gente a comer na rua; se não será por haver tantos voluntários a distribuir comida na rua que os técnicos não integram aquelas pessoas nos diversos refeitórios que existem pela cidade.

A partir daquele conjunto de mapas, qualquer membro do NPISA poderá apresentar propostas. Para já, fala-se em encontrar formas de as pessoas que vivem na rua poderem fazer as suas refeições num lugar abrigado, reservado dos olhares de quem passa, e não na rua, de pé, com a tigela na mão. Através de um sistema de escala, as organizações de voluntários poderiam fazer a distribuição dos alimentos que iam angariando. Mas admite-se, sobretudo, a necessidade de articulação entre os diversos grupos para que não haja desperdício nuns dias e míngua noutros.

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