O esplendor de um Tigerman à solta

Paulo Furtado esgotou o Lux em Lisboa e deu um concerto em que tudo pôde acontecer. Sem paninhos quentes, sem respeitinho e com algumas falhas técnicas que não estragaram um espectáculo original. 4 estrelas.

Fotogaleria
The Legendary Tigerman no Lux, em Lisboa, na quinta-feira à noite Enric Vives-Rubio
Fotogaleria
Enric Vives-Rubio
Fotogaleria
Enric Vives-Rubio
Fotogaleria
Enric Vives-Rubio
Fotogaleria
Enric Vives-Rubio
Fotogaleria
Tigerman é um dos convidados Enric Vives-Rubio
Fotogaleria
Enric Vives-Rubio

Legendary Tigerman sem amarras. De pé sobre as colunas de palco à direita do público. Uma mão segurando o microfone, outra agarrada a um dos tubos luminosos que, pendendo do tecto, decoram o espaço. A voz em vibrato, qual Elvis, qual Jon Spencer, qual Lux Interior, qual Tigerman, ele que é outro elo na cadeia que perpetua esse grito que sabemos imortal desde a década de 1950. O órgão do convidado Filipe Costa fervilha, febril e distorcido, e a bateria de Paulo Segadães, novo cúmplice de palco, mantém-se sem tréguas no rumo traçado.

Tigerman lá em cima, pernas respondendo em dança de espasmos e voz que grita o tal grito. Tão simples e tão total: “rock'n'roll!”. “21st Century Rock'n'Roll”, para sermos precisos. A guitarra já saltara borda fora, atirada para um canto do palco, depois de expelir toda a electricidade possível, o público dançava e Tigerman incitava: “Rock'n'roll!” – uma e outra vez. Mas o homem lá em cima não queria conforto. O microfone deixara de ser virado para o público para que o público amplificasse o grito. Tigerman fazia-o descer sobre a boca das colunas e o feedback espalhava-se pela sala a intervalos regulares.

Quinta-feira, num Lux esgotado, Legendary Tigerman, o homem que responde por Paulo Furtado na vida civil, apresentou “True”, o quinto álbum de originais que editou desde 2002 (e o seu melhor disco). O título do novo registo adequou-se mais do que poderíamos imaginar ao concerto. Todos conhecem o cliché tantas vezes aplicado às melhores bandas da história do rock. Com elas em palco “tudo pode acontecer e normalmente acontece”. Com Legendary Tigerman, acabado de aterrar no primeiro lugar da tabela de vendas em Portugal, músico que se inscreveu no nosso imaginário pelo suor e pela verdade dos concertos, data após data, ano após ano, actuando da mesma forma perante as escassas dezenas que o viam nas actuações de há mais de uma década ou perante os milhares que lotaram os Coliseus no final da digressão de “Femina”, o álbum de duetos de 2009; com Legendary Tigerman, dizíamos, o cliché não é redundância, é constatação de um facto. E como é bem-vinda a erupção do inesperado num universo, o da música em particular, tantas vezes refém actualmente de gestos padronizados, mecânicos, entediantemente repetitivos.

No Lux, com este Legendary Tigerman que expande o seu universo, acolhendo Segadães, Filipe Costa ou o saxofonista João Cabrita, convidados no concerto, mas que não deixa de ser ainda “one man band” – e mostrou sê-lo verdadeiramente, selvagem e punk na atitude, na secção em que vestiu a pele de “motherfuckin' bad loving rhythm'n'blues machine” e em que acelerou ao ritmo do gloriosamente tresloucasdo “She said” de Hasil Hadkins –, não houve espaço para o conforto do previsível.

O início fez-se com a melancólica doçura de uma balada com sabor a standard, “Do come home”, a primeira de “True”. A segunda, “Walkin' downtown”, trouxe o blues enquanto matéria hedonista, som de perdição nas noites de boémia interminável. À terceira, “Wild beast”, tornou-se óbvio como em “True” cresceu nele um domínio perfeito da tensão dramática que a bateria primitiva de Paulo Segadães, na primeira aparição da noite, acentuou. Descem as luzes e, recortado em contra-luz, vemos-lhe o contorno dos óculos escuros no rosto: canção conturbada seguindo caminhos diferentes do registado em disco, usando o silêncio para fazer crescer a tensão: “I'm just a wild beast, with a broken heart” – não podia haver melhor sequência para ela que a “Storm over paradise” de neurose Caveana e libertação garage-rock que, muito adequadamente, se seguiu.

Não foi um concerto isento de falhas. Falhas técnicas: um feedback não desejado invadindo aqui e ali as colunas, o dueto virtual com Lisa Kekaula em “The saddest thing to say” que Tigerman interrompeu porque a vocalista dos Bellrays estava projectada no ecrã mas a sua voz não se ouvia. Nada que atemorizasse o homem em palco. Prometeu fazer estalar o chicote, mais tarde, sobre o responsável e avançou. Parar ou recomeçar não era hipótese. Não podia sê-lo, de resto. Passáramos antes pelo “clássico” “Naked blues”, marco do início da viagem em 2002, ouvíramos uma impressionante “Gone”, rock'n'roll endiabrado pela presença do saxofone barítono de João Cabrita, acolheramos os clássicos de Eddie Cochran, “Twenty flight rock”, e dos Booker T & The MGs, “Green onions” (magnífico duelo com Filipe Costa). Uma falha técnica, neste contexto, não passa de pormenor desagradável, certamente, mas rapidamente esquecido. Afinal, existe em Legendary Tigerman uma genuinidade no gesto artístico, uma ausência de artifício e uma intensidade na entrega ao palco e às canções que são empolgantes e inspiradoras. E sobressai agora um domínio aperfeiçoado da dinâmica da música e, pelo apoio de Paulo Segadães, uma liberdade renovada na ocupação o palco.

Não deveria haver encore depois da explosiva “XXIst century rock'n'roll”. Disse-o o próprio. Mas quando algum do público começava já a abandonar a sala, ele regressaria. Começou a tocar “Love ride”, belíssimo pedaço de folk delicadamente electrificado. “Vamos fazer amor às escuras”, brincou. Algures na frente do palco, alguém alheado da música conversaria em volume pouco respeitoso. O homem em palco parou a canção, irritado pela segunda vez (queixara-se da mesma situação no início do concerto). “Quero levar-vos numa viagem, ou vêm ou põem-se no caralho”, disparou. Recomeçou a dedilhar a guitarra: “I wanna take you for a ride / I wanna take you in a love ride / tonight”. Não cantou muito mais. De repente, vêmo-lo a pôr a guitarra de lado e a saltar para a plateia na direcção do ruído, confrontando quem tanto o irritara.

Retomaria “Love ride” pela terceira vez. Já era outra canção, contaminada pela situação. Balada fervendo, Tigerman no fio da navalha. Não, não devemos esperar o habitual de um concerto de Legendary Tigerman. Felizmente. Ainda mais quando, com a chegada de “True”, o descobrimos mais complexo do que nunca, intenso como sempre. Inescapável esta entrega ao momento e à verdade do momento. Sem paninhos quentes, sem respeitinhos. Tudo pode acontecer e normalmente acontece.

Sugerir correcção
Comentar