Governo quer libertar linces até Junho mas admite recuar se não houver condições

Proprietários rurais e ambientalistas temem fracasso desta primeira tentativa e pedem mais tempo até à reintrodução dos linces-ibéricos no território português.

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Myrtilis foi encontrada morta no passado dia 1 de março Héctor Garrido/Banco Audiovisual da Andaluzia

O secretário de Estado do Ordenamento do Território, Miguel de Castro Neto, reafirmou nesta quarta-feira que acredita na possibilidade de reintroduzir oito linces-ibéricos no Vale do Guadiana até Junho, como foi decidido na semana passada pelos parceiros do projecto europeu LIFE+ Iberlince. Ainda assim, depois de ouvir as preocupações de proprietários rurais e ambientalistas, admitiu que a libertação não avançará se não estiverem reunidas as condições necessárias.

“É verdade que temos alguns desafios que não controlamos e que estamos a monitorizar”, disse o governante, depois de uma ronda de reuniões com os parceiros do Plano de Acção para a Conservação do Lince-ibérico em Portugal (PACLIP). No topo da lista de “desafios” está a dieta do lince-ibérico (Lynx pardinus), constituída em 90% por coelho-bravo. Esta espécie foi praticamente dizimada nas últimas décadas pela doença hemorrágica viral (DHV), o que contribuiu largamente para a quase extinção daquele que é o felino mais ameaçado do mundo.

A Associação Nacional de Proprietários Rurais, Gestão Cinegética e Biodiversidade (Anpc), que representa a maioria das zonas de caça e dos proprietários rurais do Vale do Guadiana no Baixo Alentejo, alerta que não existem coelhos suficientes para garantir a sobrevivência e conservação dos oito linces criados em cativeiro, que o Governo prevê libertar (três numa primeira fase, depois mais três e finalmente mais dois). São necessários quatro coelhos-bravos por hectare para cumprir aquele objectivo mas a monitorização feita pela Anpc aponta para a existência de apenas 0,5 coelhos por hectare.

"A necessidade de redefinir o calendário para a reintrodução, tal como defendido pela Anpc, parece-nos fundamental, desde logo pela impossibilidade de até ao final da Primavera ter no terreno densidades de coelho adequadas", sublinha a associação em comunicado.

Declínio "brutal" do coelho-bravo
Depois de um forte surto no final da década de 1980, a população de coelhos-bravos ganhou resistências e recuperou. Porém, em 2011 surgiu uma nova variante do vírus, mais letal, que arrasou a população, particularmente os juvenis. E tudo aponta para um novo surto este ano. “Houve um declínio brutal [na ordem dos 80% em 2013] e ainda não sabemos ao certo se as populações estão a recuperar ou não”, diz Pedro Esteves, do Centro de Investigação em Biodiversidade e Recursos Genéticos (Cibio) da Universidade do Porto.

Este investigador tem estudado a nova estirpe do vírus e defende a necessidade de um estudo exaustivo da população actual de coelho-bravo, para saber se a espécie está ou não a ganhar defesas contra o vírus e traçar uma estratégia para a sua conservação. “Apresentámos uma proposta ao Governo e ao ICNF [Instituto de Conservação da Natureza e Florestas] mas não obtivemos resposta”, lamenta. E mesmo que a resposta chegue entretanto, “até Junho é impossível fazer seja o que for”, considera.

O secretário de Estado do Ordenamento do Território diz ter informações que apontam para a existência de coelho-bravo em quantidades suficientes na natureza para garantir o sucesso da reintegração dos linces-ibéricos. “No Vale do Guadiana, temos indicação de que num determinado transecto [parcela de terreno] as populações variam entre dois e 3,7 coelhos”, explica, para depois sublinhar: “Não temos razão nenhuma para duvidar dos dados que estão em cima da mesa”.

Ainda assim, “em última análise, o que pode acontecer é não reintroduzirmos o lince-ibérico em local nenhum se não tivermos condições”, admite. Mas não é esse o cenário previsto. “O nosso objectivo é tornar 2014 não apenas o ano em que foi reintroduzido o lince-ibérico em liberdade, mas o ano do lince-ibérico em Portugal”, afirmou, acrescentando que está a ser definido “um conjunto de acções”, que irá ser apresentado em Abril aos parceiros do PNACLIP, com vista a reforçar, nos próximos meses, o trabalho que tem sido feito nos últimos anos por diversas entidades no domínio da conservação da espécie.

A Liga para a Protecção da Natureza (LPN) é uma das organizações com trabalho feito no Alentejo. Depois do projecto LIFE Lince, a associação desenvolve actualmente o LIFE Habitat Lince Abutre, cujo objectivo é a promoção do habitat destas duas espécies ameaçadas no sudeste do país. Também a LPN ficou preocupada com o anúncio da libertação dos linces. Depois da reunião desta quarta-feira com Castro Neto, as preocupações mantêm-se.

“Não há tempo para pôr em prática todas as acções necessárias”, insiste Eduardo Santos, coordenador do LIFE Habitat Lince Abutre. Por um lado, há a questão do coelho-bravo: “A quebra foi drástica e a dinâmica ecológica da espécie não se restabelece em semanas”, afirma, sublinhando que a tendência actual da população é de queda. “É necessário um mínimo de dois coelhos por hectare para assegurar a reprodução das fêmeas, mas são precisos quatro coelhos por hectare para criar um novo núcleo da espécie”, que é o objectivo do plano, acrescenta. E identifica outros problemas: “É preciso saber qual a aceitação do lince-ibérico por parte da sociedade e isso não está a ser devidamente estudado”. Além disso, é preciso conhecer os riscos de mortalidade por atropelamento e tomar medidas para evitá-los. Segundo os dados mais recentes do projecto LIFE+Iberlince, em Espanha, na Andaluzia, 40% dos linces reintroduzidos na natureza morreram, muitos por atropelamento.

Se esta primeira tentativa em Portugal fracassar, poderão estar em causa os esforços desencadeados após a criação do Plano de Acção para a Conservação do Lince Ibérico em Portugal, em 2008. Foi no âmbito deste Plano que nasceu em 2009 o Centro Nacional de Reprodução em Cativeiro para o Lince-Ibérico, na Herdade das Santinhas, em Silves — que foi em 2013 a melhor maternidade para a espécie. A conservação ex-situ é uma das ferramentas para a reintrodução dos felinos no seu habitat natural.

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