O homem do tanque

Há, em todo o mundo, uma fotografia icónica de um homem carregando sacos de plástico na Praça Tiananmen, em Pequim, e sozinho impedindo a passagem de um tanque.

Do que nos esquecemos frequentemente é que para cada homem em frente a um tanque militar há outro dentro do tanque militar. Um homem que pode disparar, ou não. Um e outro estão ligados pelo laço que dá a vida ou a morte.

Ontem o PÚBLICO trazia uma fotografia igualmente significativa. Ao contrário da primeira, a história não se percebe ao primeiro olhar, num segundo apenas. É uma história com mais história: um homem está de costas, de pé em cima de um tanque blindado, de mãos nas ancas e espreitando para dentro da torre da metralhadora. É o brigadeiro que dá ordens para abrir fogo na manhã do dia 25 de abril de 1974. Lá dentro estava um homem que, até agora, ninguém sabia ou se lembrava de quem era. Até agora.

A fotografia é de Alfredo Cunha e a história do homem foi investigada e escrita por Adelino Gomes, para um livro sobre Os Rapazes dos Tanques — os jovens militares que estiveram frente a frente naquele dia e não abriram fogo uns sobre os outros. O texto que daí resulta é uma das coisas mais belas, e mais simples, que já li em qualquer jornal (imagino que o seja igualmente em livro). Claro que a razão para sentir assim é que aquele momento do não-disparo nos diz muito. Tudo o que somos dependeu dele.

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O nome do homem que não se deixou convencer a abrir fogo é José Alves Costa. Um nome português como o de qualquer português. Quase um nome de soldado desconhecido, mas que está vivo e na sua aldeia. Não é o único. O seu alferes também desobedeceu às ordens para disparar — aliás, parece ter sido ele quem disse para não se abrir fogo sem permissão sua, que nunca chegou a dar. José Alves Costa fechou a porta do tanque e ali ficou, fazendo-se desentendido. Usando as armas dos fracos para não fazer aquilo que os seus superiores hierárquicos lhes pedem. Que, no caso, era matar outros seres humanos, portugueses e jovens como ele. Se esse jovens não tivessem sido bem sucedidos, José Alves da Costa teria sido severamente punido. Porque, como ele diz hoje, “a gente sabia o regime que tinha”.

Até nessa frase, que lembra o famoso e curtíssimo discurso de Salgueiro Maia em Santarém antes de sair para acabar com o regime (“Há os Estados socialistas, há os Estados corporativos e o estado a que isto chegou”), se podem encontrar motivos para ver em José Alves Costa o contraponto de Maia. As balas de um não foram ao encontro com o corpo do outro. A ação de um e a omissão do outro foram decisivas para nós todos.

Mas, de novo, eles não foram os únicos. De um lado e de outro, tínhamos rapazes cansados de ir ao encontro da morte, deles e de outrem, e avessos ao derramamento de sangue. Depois de uma ditadura de professores, tivemos uma revolução de rapazes da aldeia transformados em soldados. Rapazes que queriam que os deixassem em paz.

José Alves Costa lembra-se da fome na aldeia, e do medo que sentiu no 25 de abril de 1974. E hoje — também por ser devoto — chama-lhe “abençoado dia”. Tem razão.

Abençoado dia.

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