A aprender a ser governanta para sair do RSI

Continua a cair o número de beneficiários de Rendimento Social de Inserção, apesar da crise. Instituição particular de solidariedade social, no Porto, tenta criar diferenciação no mercado de limpezas para empregar beneficiárias

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Deixou a escola há dez anos. Não via préstimo no que para lá ensinavam. Contava 12 anos e tudo aquilo lhe soava a tempo perdido: queria trabalhar, levar dinheiro para casa, auxiliar a mãe. O trabalho não a assustava. Desde os seis anos, via a mãe trabalhar, ela ficava a cuidar da casa e dos dois irmãos.

Passaram dez anos. Patrícia Fernandes é a mais jovem aluna de um curso de governantas criado pela Orientaris – Consultorias de Gestão e pela Qualificar para incluir (QPI), uma instituição particular de solidariedade social que procura incluir beneficiários de Rendimento Social de Inserção (RSI). O curso deverá ajudá-la a destacar-se numa área em que qualquer um julga ter saber.

Numa sala arrendada no Instituto Superior do Porto, uma turma de mulheres aprende a estar, a adequar o tom de voz, a controlar os impulsos, a receber pessoas com primor, a pôr uma mesa com requinte, a preparar refeições simples, a limpar qualquer superfície, a fazer arranjos de costura, a dar banho a uma criança ou a um idoso. E a falar um pouco de inglês, um pouco de francês.

No fim daquela formação de 800 horas, Patrícia espera ser capaz de tanto cuidar de uma casa como de um andar de um hotel. Encolhe-se num sorriso só de se imaginar, com o cabelo cor de mel impecavelmente preso, dentro de uma farda justa, a trabalhar num hotel ou num hostel.

Oportunidades num país envelhecido
Haverá mais oportunidades apesar de todas as crises. O Porto foi pela segunda vez distinguido com o prémio de melhor destino europeu – atribuído pela European Consumers Choice. Por toda a cidade se multiplicam unidades hoteleiras – em formato low-cost, em formato charme, em formato luxo.

Nada parece tão inovador a Cidália Queirós, ideóloga da QPI, como qualificar com exigência e noção da realidade. Antes, houve um curso de empregadas de andar. E agora este que, no seu entender, abrirá portas àquelas desempregadas ainda muito jovens, mas tão pouco escolarizadas. Não é só o turismo. A classe média empobrecida tem dispensado as mulheres a dias, mas o país está cada vez mais envelhecido.   

A QPI lida com mais de 400 famílias enliçadas em formas de exclusão. Alguns, como Maria José Silva, de 57 anos, chegaram-lhe sem saber escrever, nem ler. Em cinco anos, fez alfabetização, teve aproveitamento num curso de educação e formação de adultos, que lhe deu equivalência ao 6.º ano, e começou a trabalhar a Casa d’Ofícios, uma empresa de limpeza doméstica e empresarial.

“Apostámos muito na formação, mas é muito difícil inserir as pessoas no mercado de trabalho”, explica Cidália Querós, que fez carreira na Faculdade de Economia da Universidade do Porto e no Instituto Superior de Serviço Social do Porto. Não é só a crise económica e financeira, que atira a taxa de desemprego para 15,3%. É também o estigma, que faz com que alguns empregadores ponham de lado beneficiários de RSI.

A QPI ainda tentou criar uma empresa de inserção, mas deparou-se com a porta fechada: as candidaturas e essa velha medida de empreendedorismo social, que inclui formação, profissionalização e integração profissional de pessoas desfavorecidas, estão suspensas desde 2012. Decidiu abrir a Casa d’Ofícios.

A equipa tanto trabalha dispersa como se concentra numa “empreitada”. Está agora num armazém, ainda a cheirar a novo, na zona industrial da Maia. Maria José passa um pano húmido nos armários. Numa divisão, outra mulher passa a esfregona no chão liso. No topo de uma escada, um homem a limpar as janelas. De um lado para outro, duas assistentes sociais – Teresa Cerqueira e Carla Tralhão – tudo supervisionam.

Carla e Teresa afinam ensinamentos com cada trabalhador – a responsabilidade de cumprir os horários acordados com o cliente, o gosto pelo trabalho bem feito, a cortesia. À Casa d’Ofícios cabe prepará-los para auto-emprego ou para emprego, embora também tente dar emprego. Uma das mulheres que nela trabalham é Paula Fernandes, a mãe de Patrícia, 20 anos mais velha do que a filha.

Paula queria muito trabalhar. “Sempre trabalhei”, comenta ela, sem largar a esfregona. “Trabalhei em cafés, em fábricas, em casas de pessoas idosas.” Deixou o trabalho para cuidar da mãe cancerosa. De rompante, separou-se do companheiro. Não é que a relação tivesse acabado de repente, sem qualquer aviso. É que teve muito desgosto para lá do fim do amor. O único salário deixou de entrar. Restava-lhes o RSI.

“Não gosto daquilo”, diz ela. Sentia que a qualquer hora lho podiam tirar. E o certo é que há pouco deixou de o receber. A prestação foi suspensa por erro dos serviços. Nos últimos meses, repetem-se as queixas de cortes indevidos derivados, sobretudo, ao facto de se ter tornado obrigatório renovar o RSI a cada ano.

O Estado tem estado a recuar em toda a linha. Isso nota-se nas prestações sociais não contributivas. No final do ano, havia 231.949 pessoas a receber RSI – a maior parte residente nos distritos de Porto (66.556), Lisboa (44.091) e Setúbal (17.651). Eram quase menos 49 mil do que um ano antes.

Trabalhar é trocar o certo pelo incerto
Paula tem de trabalhar longas horas para alcançar os “400 e tal euros” que antes recebia de RSI. Seja lá qual for o montante, quem obtém um rendimento de trabalho tem de o descontar no RSI. Se passar recibo verde, tudo. Se tiver um contrato: 50% no primeiro ano, 80% no segundo, 100% no terceiro.

Para já, a Casa d’Ofícios só consegue ter três trabalhadores a contrato – Paula é uma delas. A empresa atraiu até agora duas dezenas de clientes – famílias com casa para limpar, nalguns casos. Procura mais. Há muito quem prefira pagar menos a uma pessoa que faça limpeza sem recibo, lamenta Carla Tralhão.

Perante pedidos extra, há que recorrer a trabalhadores por conta própria – recibo verde. Conforme as necessidades, uma pessoa pode trabalhar muitas horas num mês e poucas noutro. Todos os meses é preciso informar a Segurança Social sobre o valor aferido através do trabalho. Os serviços podem demorar a fazer o acerto. Durante dois ou três meses, podem continuar a descontar, por exemplo, 150 euros do RSI quando a pessoa, afinal, ganhou 50 ou 100.

Ali, como em muito lado, uma dificuldade se levanta: como motivar? Trabalhar significa trocar o certo pelo incerto. As pessoas podem ganhar menos. Só se nunca tiverem passado recibos verdes ficam isenta de pagar Segurança Social no primeiro ano. Têm de reorganizar toda a sua vida – se tiverem crianças ou idosos a cargo há que encontrar quem cuide. E têm de pagar passe. Não há quem não reclame transição mais suave, no mínimo como acontece a quem tem contrato.

Trabalha com ânimo, Paula. “É uma hora aqui, duas horas ali, quatro horas acolá…” No próximo mês, já terá horário completo.

Os dias cheios de nada, lá em casa, eram dias cheios de inferno. Passavam demasiado tempo uns com os outros. “Discutíamos muito, até por falta de comida”, recorda Patrícia. Não estava habituada àquilo. Até engravidar, trabalhou sempre na mesma fábrica. Aos 19 anos, apenas com o 6.º ano, com a criança ao colo, desespero. Desde que o curso começou, esperança. “Estou a aprender, estou a cuidar um bocadinho da minha cultura. Depois, vou ter um bom trabalho e um bom futuro.”

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