Forças Armadas arriscam perder autoridade no ar e no mar

Ex-chefes militares revoltados com propostas de alteração às leis de Defesa Nacional e de Bases da Organização das Forças Armadas. Governo revê ainda relação de forças entre CEMGFA e chefes dos ramos.

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Governo quer rever relação das forças entre CEMGFA e chefes dos ramos Miguel Dantas

As Forças Armadas (FA) arriscam perder a chefia da Autoridade Marítima Nacional e da Autoridade Aeronáutica Nacional que hoje detêm nas operações civis de fiscalização e segurança, tanto no mar como no espaço aéreo. Numa proposta a que o PÚBLICO teve acesso, o Governo admite que as FA passem apenas a "disponibilizar" recursos a esses órgãos, quando hoje são as FA que "dispõem" dessas autoridades.

Esta é a conclusão a retirar das propostas de lei orgânicas que o Governo tem já prontas e tenciona apresentar ao Conselho Superior de Defesa Nacional (CSDN) na próxima segunda-feira, antes de as aprovar em Conselho de Ministros e enviar para o Parlamento. Desde o início do seu mandato que o ministro da Defesa assumira a intenção de rever as leis orgânicas de Defesa Nacional (LDN) e de Bases da Organização das Forças Armadas (LOBOFA).

É na proposta de projecto da LOBOFA que José Pedro Aguiar-Branco, numa frase, retira o protagonismo às Forças Armadas. No capítulo relativo à organização dos ramos das FA é proposto que estes “podem [...] disponibilizar recursos humanos e materiais necessários ao desempenho de atribuições e competências de órgãos ou serviços regulados por legislação própria, nomeadamente a Autoridade Marítima Nacional e a Autoridade Aeronáutica Nacional.”

Na legislação actualmente em vigor, a redacção é diferente: “Os ramos podem dispor de outros órgãos que integrem sistemas regulados por legislação própria, nomeadamente a Autoridade Marítima Nacional e a Autoridade Aeronáutica Nacional.”

A forma como a alteração está redigida abre a porta à possibilidade de que os militares passem a estar subordinados a entidades nas quais podem deixar de ter qualquer representação. Limitando-se a ceder os seus activos para a prossecução de missões de fiscalização e vigilância no mar e no ar. Missões como as de busca e salvamento no mar português, onde a Marinha e a Força Aérea trabalham em conjunto.

O PÚBLICO confrontou o Ministério da Defesa sobre as implicações da nova redacção e o porquê da alteração. Do gabinete do ministro José Pedro Aguiar-Branco apenas foi comunicado que se estava perante “um documento de trabalho”. Isto apesar de os documentos a que o PÚBLICO teve acesso se intitularem “proposta de lei orgânica” e de haver a intenção de as apresentar ao CSDN na segunda-feira. Em qualquer caso, a proposta de lei orgânica terá de ser aprovada no Parlamento, dado serem matérias de competência partilhada.

Matéria sensível na Constituição
A questão não é nova. Desde há anos que se debate o emprego de forças militares em missões de segurança interna. Uma matéria sensível em termos constitucionais, uma vez que as FA estão impedidas de assumir missões internas a não ser em situações de emergência.

Os sucessivos governos e a Armada ensaiaram uma solução para o problema com o conceito da Marinha de “duplo uso”. Que se concretizou com a criação, em 2002, da Autoridade Marítima Nacional e a junção - sob a sua tutela, no organigrama, da Marinha - da Polícia Marítima, do Instituto de Socorros a Náufragos, das capitanias dos portos, entre outros órgãos. Actualmente, a AMN está regulamentada na lei orgânica da Marinha. Para contrabalançar as questões constitucionais, a AMN e os órgãos que a compõem são sempre apresentados como uma componente civil da Marinha e do Ministério da Defesa. O chefe de Estado-Maior da Armada tem, portanto, a dupla responsabilidade de liderar a Marinha e a AMN.

A nova redacção fez soar o alarme, já que abre a porta à transferência destas autoridades para outra tutela política. Nomeadamente, o Ministério da Administração Interna.

A Marinha tem assumido uma posição mais assertiva do que a Força Aérea nesta matéria por ter uma tradição de mais de 100 anos de representação da soberania nacional no mar. Mas a verdade é que entretanto foram transferidas competências e recursos, em particular, da Marinha para outras entidades, como a GNR na orla costeira. Uma mudança que tem gerado uma guerra surda entre organismos do Estado.

O PÚBLICO contactou antigos responsáveis destes dois ramos sobre as alterações à lei. “Não acredito que isso possa ser verdade”, reagiu o Almirante Melo Gomes, que foi Chefe do Estado-Maior da Armada durante cinco anos até 2010. “Estou a ouvi-lo e estou-me a arrepiar todo”, reconheceu o General Fernando Seabra, comandante operacional da Força Aérea até 2000.

A reacção não podia ser mais negativa. “Isso equivale a tirar aos ramos a capacidade de autoridade e de socorro e salvamento. Perverte a cadeia de comando e, além disso, pode implicar a criação de outros órgãos no Estado. No momento de emergência em que vivemos, é um crime de lesa pátria tomar essa opção”, dispara Melo Gomes.

O general da Força Aérea é igualmente crítico. “Uma situação desse género faz-me supor que mais uma vez estamos a ser usados e delapidados por interesses que eu não conheço”, denuncia, antes de admitir não conseguir perceber o porquê da decisão. “Ninguém nos pode apontar nada [à Marinha e à Força Aérea]: nem em termos de incompetência nem em termos de falta de resposta.”

Este antigo responsável militar admite a possibilidade de existirem outros interesses por trás da opção. “Há muita gente interessada em fazer a busca e salvamento”, adverte, antes de lembrar as elevadas verbas que as companhias aéreas pagam – as taxas de rota – para assegurar a segurança e vigilância do vasto território que está sob responsabilidade portuguesa. 

Sobre estas críticas, o gabinete de Aguiar Branco preferiu não tecer qualquer comentário.

Mais poder para CEMGFA
Os dois projectos de lei avançam também com alterações ao nível da autoridade do Chefe de Estado-Maior General das Forças Armadas (CEMGFA). Que ganha um maior poder na esfera dos ramos. Na Lei de defesa Nacional é notório o esforço para subordinar os Chefes dos ramos ao CEMGFA, quando se estipula que estes “dependem hierarquicamente do CEMGFA nas matérias relativas à capacidade de resposta das FA”. Na lei em vigor, essa autoridade estava esbatida uma vez que o CEMGFA e os Chefes dos ramos dependiam do ministro da Defesa. Na LOBOFA, duas estruturas actualmente existentes, o Estado-Maior Conjunto e o Comando Operacional Conjunto desaparecem da presente proposta para dar lugar a um “comando de nível operacional” a ser tutelado pelo CEMGFA. Ao longo desta proposta repete-se por mais de uma vez a “dependência hierárquica” dos Chefes de Estado-Maior em relação ao CEMGFA.

Essa orientação é bem visível na LOBOFA quando esta abre a porta a que o CEMGFA assuma mesmo o comando dos ramos: “Para efeitos de apoio ao exercício do comando por parte do CEMGFA, os comandos de componente [naval, terrestre e aérea] poderão ser colocados na sua dependência directa, de acordo com as modalidades de comando e controlo aplicáveis a situações específicas de emprego operacional de forças e meios, a definir caso-a-caso.”

Outra alteração que está em vias de se concretizar é um maior poder do Parlamento em relação ao envio de missões militares no estrangeiro. Qualquer decisão do Governo nesse sentido passa a ter de ser “apreciada” e “comunicada previamente” à Assembleia da República. A actual legislação dava ao Parlamento a possibilidade de “acompanhar a participação de destacamentos”. O Governo fica ainda obrigado a “comunicar à AR” a “decisão de envolver contingentes no estrangeiro” , bem como a “apresentar relatórios circunstanciados sobre esse envolvimento”.

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