Uma marmelada ou duas grafias numa só resposta

Cheguei a ponderar não mais regressar ao tema do Acordo Ortográfico (AO90). E bem certo é ter pouco a acrescentar, senão que, como professor, também causou entre a classe uma série de trapalhadas evitáveis, desde a sagração do conversor Lince à categoria de juiz da língua, à inevitável dificuldade de se formularem provas de exame nacionais reduzíveis à ortografia unificada: ao contrário, os autores dos exames e testes intermédios foram sempre cautelosos em expressar a dualidade linguística – isto é, o aluno podia, em qualquer caso, usar em simultâneo as duas grafias.

É o que podemos ler, por exemplo, nos critérios gerais de classificação do último teste intermédio de Português de 9º ano (6 de Fevereiro de 2014): “(…) continuarão a ser consideradas corretas as grafias que seguirem o que se encontra previsto quer no Acordo Ortográfico de 1945, quer no Acordo Ortográfico de 1990 (atualmente em vigor), mesmo quando se utilizem as duas grafias num mesmo teste”. Isto, levado à letra, pressupõe as duas grafias numa mesma resposta. De que serve então um acordo, ao que se julga normativo, se ele não se impõe, mesmo quando se dá como estando “em vigor”? Sempre foi esta a minha questão.

Ante a vacilação de muitos professores, que, em geral, optaram por alinhar com a nova norma ortográfica (mesmo tratando-se dos docentes do grupo de Português), o AO90 nunca teve plena aceitação nas escolas e eu mesmo tenho sido opositor à sua implementação – é por isso que faço a ressalva do costume com os meus alunos (“escrevo assim, mas parece que vocês devem optar por esta forma”). Face a inúmeras incongruências (a perda do parentesco lexical das famosas cognatas, a ambiguidade do que se entende por “exceções já consagradas” – ver base XV, 6º – e a obscuridade do critério de hifenização dos compostos), bastas vezes citadas nos artigos dedicados à matéria, não vejo senão duas saídas para a questão: prossigamos na asneira, porque já está feita, e os custos para a remediar são de monta; ou nem tudo está perdido – vamos a tempo de perceber que se tratou de um passo em falso que só nos resta emendar.

A meu ver, os acordos são cruciais e necessários, e em especial aqueles cujas implicações são de ordem social e económica, para não dizer política. Em 1945, estas questões não se poriam da mesma forma, sabendo de antemão que os países africanos de língua oficial portuguesa se encontravam igualmente sob jurisdição cultural e linguística de Portugal. Actualmente, e com a euforia da “lusofonia” e dos estudos “pós-coloniais”, passou a haver muita deferência para com os vários países que constituem esse maravilhoso mundo lusófono, ainda que, em verdade, só os agentes artísticos e culturais fossem capazes de promover verdadeiros e honestos acordos: o resto foi mentira. Para simular a aparência de um acordo económico-político, inventou-se o AO90, que não passa de uma reforma linguística atabalhoada, de matiz ideológico (no caso, de um paternalismo serôdio). Aliás, as inflexões do Brasil e dos países africanos são eloquentes. Também me parece caricato que Portugal se empenhe em apresentar-se como o “dono” de uma língua que acede em se tornar análoga às expressões congéneres de outros países. Não estamos em posição de ceder em nada, porque nem sequer temos poder para tal. Bastava ficarmos onde estávamos.

Em resumo, creio que este AO90 é um rotundo falhanço que serviu para baralhar as pessoas, entre as quais uma boa porção de alunos. E não apenas um falhanço: uma inutilidade. E nem tenho a pretensão de pedir que ninguém se retracte (ou preferem retrate?). Continuo a ler Luandino Vieira, Corsino Fortes, José Craveirinha ou João Cabral de Melo Neto sem a necessidade de um acordo. Ouço Maria Rita e Caetano Veloso e a estranheza só existiria se não escutasse neles aquele seu sotaque. Ora, se um acordo é inútil, para quê mantê-lo? No mais Musa, no mais [desta marmelada], que a lira tenho destemperada/ e a voz enrouquecida.

Professor

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