O peixe que tramou a reciclagem

Vocês não imaginam o cheiro a peixe que estava no caixote. O responsável pelo transtorno nasal devia ser o saco de plástico que transportara a corvina. E que belo representante da ictiofauna, aliás. Escamas luzidias, carne rija, barbatanas intactas, olhos translúcidos, tinha todos os sinais de frescura. “É esta”, disse eu apontando para o bicho, subsequentemente desfeito à faca, manejada com assustadora perícia pela peixeira.

Trouxe-o num saco de asas, um dos itens com menor prazo de vida no inventário do capitalismo selvagem. Dura precisamente o tempo do transporte — cinco, dez, quinze minutos. Depois, num ápice, de útil passa a lixo.

E foi nesta qualidade, nulificado, que o deitei no redentor-mor dos pecados anti-ecológicos: o contentor amarelo. Todas as embalagens ali pousadas desaparecem da consciência de quem as produziu, quem as vendeu e quem as trouxe para casa. Numa analogia astronómica, é o buraco negro do ambientalismo contemporâneo.

Para limpar o meu cadastro de cidadão moderno, ou seja, insustentável, há anos que tenho o meu próprio contentor para embalagens, instalado na cozinha, por cima do verde para garrafas e do azul para papéis. Lá dentro, forrado com um saco de lixo de 100 litros, vai-se acumulando a tralha com que a indústria nos brinda, à guisa de conforto comercial. Quando está cheio, dá-se por terminado o estágio e a colecção de desperdícios transita para o ecoponto.

O caixote ainda estava a meio quando o abri para adicionar um pacote de leite vazio. Foi então que o extinto peixe disse olá, em estado de vapor. Turvou-se-me a vista, cambaleei e quase caí de costas. Com um passo para trás, consegui porém fechar a tampa, encarcerando a pestilência.

Saí de casa carregando com o braço esticado o saco dos recicláveis, higienicamente longínquo. A porta do meu prédio está equidistante de dois ecopontos. Um fica 50 metros rua acima, o outro 50 metros rua abaixo. É uma distância ridícula, que duas pernas saudáveis vencem em 45 segundos.

Mas o ser humano aprendeu, ao longo de 200.000 anos, que praticar o menor esforço não só é uma boa filosofia de vida, como uma excelente estratégia de sobrevivência. Os mais eficientes têm sempre vantagem na evolução das espécies.

A aplicação desta tese à reciclagem resulta na lamúria recorrente de que os ecopontos ficam longe, uma avaliação obviamente relativa. No meu caso, havia um factor adicional. Na mediatriz entre os dois contentores estava o meu carro, que me transportaria para estação do comboio, mais o seu próprio peso, cerca de uma tonelada. Não tive dúvidas. Meti o saco mal-cheiroso no porta bagagens, planeando uma paragem no ecoponto rua abaixo, de modo a aproveitar a força da gravidade.

Entrei no carro, dei a partida, liguei o rádio e esqueci-me do plano. Nem olhei para o ecoponto. Apanhei o comboio, trabalhei até à noite e no regresso encontrei o automóvel em situação epidémica, a cheirar pior do que partido político em campanha eleitoral.

Não tive hipótese. Foi tudo para o primeiro caixote do lixo que apareceu pela frente, menos o carro, que era muito grande. Tanto esforço para separar os recicláveis e foi tudo em vão. No máximo deram um passeio de automóvel, mas à custa de algum petróleo, um bocado de CO2 a mais na atmosfera e da minha sanidade olfactiva. Por causa de um peixe, ainda por cima fresco, reciclar nunca foi tão caro ao planeta.

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