Jacques Rupnik: "A Europa fez-se contra a geopolítica, foi inventada para conter o poder"

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"A Europa estava demasiado centrada nos seus próprios problemas em torno da crise do euro e isso explica, em parte, a razão pela qual não avaliou os desafios da sua periferia imediata" Marko Djurica/Reuters
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Jacques Rupnik DR

Autor de uma vasta obra sobre a Europa de Leste, incluindo os Balcãs, a sua conversão democrática e o seu “regresso” à Europa, Jacques Rupnik é investigador em Sciences Po, Paris. Em entrevista ao PÚBLICO, diz que o que está a acontecer na Ucrânia é aquilo que acontece com o fim dos impérios, apenas 25 anos depois. O problema é que a Europa não está preparada para um mundo em que a geopolítica está de regresso.

A União Europeia foi apanhada de surpresa pela crise ucraniana, que se desenvolveu a uma velocidade imprevisível. Foi por causa da crise, que não a deixa pensar em mais nada?
A Europa estava demasiado centrada nos seus próprios problemas em torno da crise do euro e isso explica, em parte, a razão pela qual não avaliou os desafios da sua periferia imediata. Em segundo lugar, o que era proposto no Acordo de Associação da União Europeia não foi visto por Bruxelas como qualquer coisa de revolucionário – uma espécie de jogo de vida e de morte na relação com a Ucrânia e, sobretudo, com a Rússia. As políticas de vizinhança não são mais do que isso: acordos que permitem o acesso ao mercado europeu, que asseguram ajuda à modernização e que garantem uma melhoria das políticas de vistos. Mas, em nenhuma circunstância, isso significa a adesão à União Europeia. A UE pensou que não estava a propor nada de extraordinário ao ponto de poder provocar uma crise interna na Ucrânia e uma crise na relação com a Rússia. Creio que houve alguma subestimação da possibilidade de a Rússia ver neste acordo uma mudança radical da orientação política ucraniana, o que não era caso.

Pode haver ainda outra explicação: a União Europeia nunca conseguiu elaborar uma estratégica comum para as suas relações com Moscovo.
Isso também é verdade. A prudência na relação com a Ucrânia também se destinava a acomodar diferentes visões que coexistem na União sobre as relações com a Rússia. Mas ninguém queria que, através de um gesto inconsequente, se abrisse uma crise nas relações com a Rússia. Esta crise ucraniana acabou por ser reveladora dessas diferentes sensibilidades europeias em relação à Ucrânia e à Rússia. Que não se resume, como se pensou muitas vezes, a países como a Polónia ou os Bálticos, que estão na linha da frente e que se sentem mais próximos das dificuldades da Ucrânia. Temos de nos lembrar que parte da Ucrânia fazia parte da Polónia e que isso deixou laços privilegiados. Mas não é só isso. Nessa diversidade de sensibilidades em relação à Ucrânia há, no entanto, um denominador comum: ninguém quer um novo alargamento da União. A opinião pública europeia é esmagadoramente contra. Na Alemanha é de 75 por cento, em países como a Holanda, Áustria ou França é de 70 por cento. E mesmo na República Checa chega aos 51 por cento contra a continuação do alargamento.

É um pouco como aconteceu com a NATO: os europeus também perceberam que o alargamento à Ucrânia e à Geórgia, defendido pelos americanos, não era uma boa ideia.
E também porque havia uma maioria de ucranianos que não queriam. Há uma década, a NATO era considerada como uma linha vermelha que não devia ser ultrapassada, mas a União Europeia não era vista, incluindo na Rússia, como uma instituição particularmente ameaçadora. Isso mudou depois da Revolução Laranja de Dezembro de 2004 e desde que Vladimir Putin decidiu retomar a influência na antiga periferia soviética da Rússia. O Acordo de Associação foi visto em Moscovo como se se tratasse de uma separação da Rússia.

Putin quer a Ucrânia dentro desta União Euroasiática que está a formar?
Isso mesmo. De alguma maneira, ele impôs uma escolha à Ucrânia: ou a União Euroasiática ou o acordo com a UE. É aqui que está a novidade: a Rússia passou a tratar a UE como um concorrente directo, incluindo-a numa estratégia ocidental que visa separar os vizinhos próximos da Rússia e que, consequentemente, constitui uma ameaça.

Foi isso que a Europa nunca imaginou que Putin pudesse ir tão longe na Crimeia. Usa argumentos que fazem lembrar as invasões da Hungria (1956), da Checoslováquia (1968) e o próprio Afeganistão (1979): ir em socorro de um país irmão que pediu ajuda. Agora, o pretexto são os russos que vivem fora?
Há essas ressonâncias antigas. Antes era para salvar o socialismo, hoje é para salvar a minoria russa. Mas isso é ao nível da linguagem. De uma maneira mais geral, assistimos àquilo que costuma acontecer no fim dos impérios. É um problema que outros impérios viveram e que a Rússia está hoje a viver à sua maneira. O que hoje vemos na Crimeia devíamos ter visto depois da desintegração da União Soviética. A Ucrânia e as outras repúblicas tornaram-se independentes, 25 milhões de russos viram-se fora da Rússia, que lhes chama “pés-vermelhos, como a França chama “pied-noir” aos franceses que vieram das colónias do Norte de África. Nesse momento, a política russa podia ter sido ir defender os russos fora das fronteiras da Rússia. Ora, isso não aconteceu.

E porquê?
Porque Boris Ieltsin foi o principal instigador da fragmentação da URSS. Foi a Rússia que fez implodir a URSS. A implosão da União Soviética não veio da Ucrânia ou do Cazaquistão. Veio da própria Rússia, quando Ieltsin, enquanto primeiro Presidente democraticamente eleito, se opôs a Gorbatchov, o último secretário-geral do Partido Comunista da União Soviética. Havia nesse momento um conflito entre dois projectos. Gorbatchov propunha uma revisão profunda da federação soviética e Ieltsin preferia a ruptura. Como foi ele o instigador, não quis seguir uma política de mudança de fronteiras e de protecção das minorias russas. Já nessa altura havia um movimento na Crimeia, que incluía pedidos de socorro. Houve mesmo uma resolução do Parlamento russo nessa altura, que dizia que a Rússia os iria ajudar, porque os considerava como parte integrante do seu território. Mas Ieltsin não queria qualquer acção militar. Em síntese, Ieltsin não era Milosevic. É esta a grande diferença. Milosevic disse: se não puder manter a Jugoslávia nas minhas condições, então vou construir a Grande Sérvia, incluindo todos os locais onde haja sérvios, na Croácia, na Bósnia e no Kosovo. Ieltsin não quis fazer isso e daí o milagre da implosão de um império quase sem violência. O mesmo problema regressa agora, com esta crise, quando Putin decidiu confrontar a política ucraniana com esta escolha: ou nós ou a Europa.

É essa a grande mudança?
É essa a grande mudança com que nos defrontamos na Crimeia, que chega com um grande atraso. É um caso clássico de uma política pós-imperial perante uma região que é habitada por uma maioria russa, que nunca fez parte da Ucrânia, na qual foi integrada em 1954 por decisão de Nikita Krutchov, num gesto que não teve na época qualquer significado. Foi, aliás, para celebrar o 300º aniversário de um tratado que era interpretado como traduzindo a unidade entre a Rússia e a Ucrânia.

A União Europeia não aprendeu nada com a Geórgia? Ou eram circunstâncias diferentes?
Há semelhanças, porque também aí estávamos perante uma república independente e dois enclaves que reclamavam uma autonomia ou uma separação [Abkhazia e Ossétia do Sul]. A grande diferença foi que a iniciativa coube ao Presidente georgiano, quando lançou uma acção militar de reconquista desses dois enclaves. É a mesma ideia, mas o pretexto foi criado pelo Presidente da Geórgia. Agora não estamos na mesma situação, nem houve nenhuma declaração de hostilidade em relação à Crimeia. Podemos dizer, no entanto, que o novo Presidente ucraniano mostrou uma enorme falta de tacto quando decidiu eliminar o decreto que estabelecia o russo como língua oficial da Crimeia. Essa decisão funcionou como uma espécie de espantalho não apenas na Crimeia. Fizeram o contrário e, infelizmente, isso foi considerado como uma ameaça e serviu de pretexto a Putin para dizer que as tropas russas estavam lá para proteger os russos

O Ocidente já deixou cair a Crimeia?
Creio que não há qualquer meio, nem para a Europa nem para os Estados Unidos, de impedir a integração da Crimeia na Rússia. O referendo vai ser realizado e não vejo que há forma de o impedir. O que penso que os europeus e o Ocidente, em geral, devem fazer é impedir que o que se passa na Crimeia se alastre para a parte oriental da Ucrânia. Porque, se isso acontecesse, seria muito mais grave. Além disso, não se trata apenas de apoiar um movimento separatista: a Rússia quer integrá-la no seu território e, do ponto de vista do direito internacional, isso é inaceitável para os europeus. Por isso estamos num processo tão complicado. Podemos dizer que vamos aplicar sanções, mas haverá uma espécie de Guerra Fria com a Rússia durante um período hoje difícil de prever.

Isso é o que Putin quer. O problema é que já não estamos nesse tempo.
Não, mas podemos regressar lá. Putin pensa que o período anterior – com Gorbatchov e com Ieltsin –, foi aproveitado pelo Ocidente para tirar proveito da fraqueza da Rússia e da sua excessiva vontade de cooperar. A conclusão que tira é que os ocidentais apenas compreendem a relação de forças. É esse o raciocínio de Putin, que é completamente século XIX e que assenta no equilíbrio de forças. Não se interessa pelas questões do direito e da democracia porque pensa que se trata de um mero verniz para camuflar as verdadeiras intenções do Ocidente. Mas também considera que se tornou indispensável para a resolução de algumas crises internacionais – na Síria, no Irão, na retirada das tropas do Afeganistão, que passam pela Rússia e sobrevoam o seu espaço aéreo. Numa palavra, que deve haver uma nova Guerra Fria que será limitada no tempo e na natureza das medidas, porque os ocidentais e, em particular, os americanos precisam da Rússia para estes problemas internacionais.

E pensa também que os europeus – e, em primeiro lugar, a Alemanha – estão demasiado dependentes da Rússia, em matéria de energia mas também de comércio, para aplicar sanções económicas duras.
Ele conta com isso, naturalmente. Pensa que os europeus vão apresentar princípios comuns mas que, na prática, quando chegar o momento das sanções concretas, vão dividir-se muito depressa. É preciso lembrar que os interesses americanos e europeus neste domínio não são idênticos. O comércio entre a União Europeia e a Rússia é onze vezes maior do que o comércio com os EUA. A Alemanha tem 6 mil empresas implicadas na Rússia e há a dependência em relação ao gás. A Grã-Bretanha tem a City e, se as sanções passarem pelo congelamento dos bens financeiros dos oligarcas, haverá uma enorme resistência. Cada país tem os seus problemas. Os polacos, pelo contrário, querem sanções mais firmes. É muito difícil ter uma política unida nesta matéria. Haverá declarações comuns da diplomacia europeia, assente num certo número de princípios. Mas, quanto às sanções, vamos ter de encontrar o menor denominador comum por causa dos interesses particulares. A Itália, por exemplo, está muito reticente…

Por causa dos acordos de fornecimento de energia.
Sim. Vamos ter uma espécie de nova Guerra Fria diplomática. Não vamos à cimeira de Sotchi [do G-8] e outras coisas do género. Estive em Londres na semana passada e toda a gente me disse que a City estava absolutamente contra esse tipo de medidas, que muita gente considera como ineficazes.

Para a Europa está a ser muito difícil funcionar num mundo em que a geopolítica está de regresso. Os europeus têm esta dificuldade de pensar apenas em termos económicos, enquanto isso se torna cada vez menos possível.
O problema é que a Europa se construiu contra a geopolítica. A Europa foi inventada para conter o poder e não como um projecto de poder. Depois de 1989 e até recentemente essa era a esperança, talvez pouco razoável, de construir uma nova Europa que finalmente se unificava no projecto europeu, assente em normas comuns. Estas eram, de alguma forma, as armas da paz. Isso estaria bem num mundo que aceitasse uma potência normativa como é a Europa. Mas, depois do 11 de Setembro, assistimos ao regresso da política de potência. Não apenas os EUA, mas a China ou os outros BRIC agem na lógica da soberania e da potência. Querem a arma nuclear, como a Índia. Não entendem o poder partilhado da Europa. Acreditam mesmo que todas estas regras são uma invenção ocidental para continuar a tirar partido da sua superioridade. Vêem isso como um neocolonialismo disfarçado. Os europeus estão, como dizem os ingleses, na última estação mas sem sítio nenhum para ir. Têm grandes ideias sobre o direito, a norma, a virtude da interdependência económica e da paz, quando no mundo de hoje o que conta é cada vez mais a logica de potência. Talvez estar crise seja uma oportunidade que nos obrigue a pensar como é que a Europa se pode reinventar como actor geopolítico.

Um desafio muito difícil de alcançar…
Muito difícil. Quando vejo os ministros dos Negócios Estrangeiros francês, alemão e polaco irem juntos a Kiev, penso que é o princípio de uma convergência real perante uma situação concreta. Mas, pelo contrário, quando olho para o Mali, vejo que a França tem de ir sozinha.

E os EUA? De algum modo Putin desafia directamente Obama.
Ele quer ser reconhecido pelos EUA como uma “grande potência” e considera que, desde há 25 anos, a Rússia foi ignorada. Gorbatchov chegou com as suas boas intenções e deitou abaixo a União Soviética. Ieltsin queria tanto agradar aos ocidentais que engoliu tudo. Putin acha que isso era contrário aos interesses da Rússia, remetida a um papel completamente subalterno. Como é que reconquista este estatuto? Pela afirmação do seu poder na Síria, no Irão, ou a fazer músculo na Ucrânia. Quer que a Rússia seja vista como um actor incontornável, mesmo que seja no sentido negativo do termo. Pensa que será por esta via que será reconhecida e respeitado por interlocutores como os EUA. Se quiser, quer ser o “inimigo preferido” dos EUA.

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