Triste manifesto

Tive um instinto de raiva quando ouvi que se preparava um manifesto sobre “reestruturação da dívida”, depois li com cuidado e pareceu-me uma reflexão inócua sobre um tema importante, mas basta reler o título que a indignação volta logo!

O primeiro argumento do manifesto é sobre o crescimento sustentado. Se a crise se instaurou pelo excesso de dívida será natural pensar que a resposta só poderá ser uma mudança económica. Claro que fica implícito a inabilidade de quem é responsável pelo aumento da dívida em primeiro lugar. O raciocínio é simples, se a dívida tivesse sido bem utilizada, o retorno chegaria para a pagar e sobrar algum. Estranhamente não existe o hábito desta preocupação, a dívida cria-se pelo péssimo sistema de gerir o país com base num orçamento de curto prazo. Quem inventou este sistema teria veleidade em ser contabilista, mas nunca gestor, muito menos governante e devia ser impedido de qualquer carreira política.

A infelicidade do texto do manifesto, para além do título, começa numa frase logo no primeiro parágrafo: “A reestruturação da dívida é condição sine qua non para o alcance desses objectivos”. Sendo estes o crescimento económico e de emprego num quadro de coesão e efetiva solidariedade nacional. Não sou especialista em escrita, o que se comprova com erros frequentes nestes textos, mas não tenho dúvidas que reestruturar a dívida é bem diferente de gerir a dívida, mesmo quando os objectivos e resultados finais sejam financeiramente semelhantes. A diferença é simples: reestruturar significa alterar as condições da dívida existente, pedimos este dinheiro emprestado, combinamos que o juro era este e que amortizávamos a dívida neste prazo e agora queremos reestruturar porque nos dá jeito que a taxa seja mais baixa, que o prazo de amortização seja mais longo e de preferência que o valor a amortizar inclua um desconto, chamado “hair-cut”.

Por outro lado, gerir a dívida é planear emissões futuras, é fazer que com base nas condições dos futuros empréstimos se consiga uma melhor taxa e um melhor prazo de amortização, que é exatamente o que, em resumo, o manifesto propõe. Reestruturar pede-se e gerir faz-se! É absurdo portanto que o documento insista em chamar de “reestruturação” a uma prática de gestão da dívida que todos os países sempre fizeram. A que propósito é que 70 pessoas tão inteligentes, e não estou a ser irónico, conseguem utilizar por 32 vezes neste manifesto uma palavra que todo o mundo associa ao incumprimento da dívida quando o que defendem é uma alternativa que garanta exatamente o contrário?

Tenho o maior respeito pela intelectualidade da grande maioria dos signatários, mesmo por muitos que defendem estratégias de combate à crise com que eu não estou de forma nenhuma de acordo mas não é isto que está em causa nesta reflexão, o que esta gente partilha é uma preocupação que a gestão da dívida deva ser feita de forma a não condicionar a estratégia de combate à crise, seja ela qual for. Mas isto é elementar, é senso comum, daquelas coisas que todos os políticos, como todos os economistas, como todos os cidadãos estarão de acordo. Por isso o manifesto dá um contributo, que podemos gostar mais ou menos, duma forma possível de operacionalizar uma coisa que todos estamos de acordo que se chama “gestão da dívida pública”. Porque falam em reestruturar?

Vejamos uma coisa que é básica: quando olhamos para as diferentes parcelas da dívida pública vemos diferentes empréstimos com determinadas condições, nomeadamente de taxas de juro e de maturidades. Num País como o nosso, pequeno, com uma economia medianamente eficiente, é natural que os empréstimos existentes tenham, na sua maioria, um prazo de maturidade inferior a dez anos. Alguém com juízo pensa que o país terá condições financeiras para pagar estes empréstimos e ficar sem dívida neste espaço de tempo? Claro que não! Seria uma impossibilidade! Mas teremos que dizer, face a esta impossibilidade, que a dívida é insustentável? Sócrates ia sendo crucificado no dia em que disse que as dívidas soberanas não eram para pagar mas apenas para ser geridas. Será das pouquíssimas coisas em que estou de acordo com esta personagem. Mas isto não é cá, é em todo o mundo! A Alemanha, a França, os Estados Unidos, o Reino Unido, não vale a pena descriminar, não se conhece nenhum País que alguém preveja que vá pagar, no sentido de acabar, a sua dívida. Até nas empresas isto é uma situação invulgar, quanto mais nos Países.

É evidente que o problema da sustentabilidade da dívida publica existe. Por sustentabilidade entenda-se uma evolução económica que a permita manter a níveis razoáveis. Mas não vale a pena, nesta âmbito, discutir a métrica dos diferentes indicadores económicos que indiciem a sustentabilidade ou insustentabilidade da dívida. Quem comprou e quem compra a nossa dívida não é nenhum bando de atrasados mentais que possamos enganar, é gente que sabe fazer contas, que precisa de rentabilizar o seu dinheiro, que sabe assumir riscos e que, com base nisto tudo, nos empresta dinheiro. Temos ainda uma vantagem, é gente que nos diz, dia a dia, hora a hora, segundo a segundo qual é o nosso nível de sustentabilidade. Como? Pelas taxas de juro a que nos emprestam.

É ainda dito no manifesto que sem a reestruturação, detesto este termo, é como se me chamassem caloteiro se eu tivesse um empréstimo à habitação que cumprisse religiosamente com o banco, de acordo com os termos acordados, mas voltemos ao assunto, é dito no manifesto que sem uma gestão adequada da dívida o Estado ficaria condicionado na resolução dos problemas do País à via da austeridade. Esta é sem dúvida uma decisão política importante, o nível que se deve usar ou abusar da austeridade, mas uma coisa é uma coisa e outra coisa é outra coisa. Porque estão aqui a misturar alhos com bugalhos? A gestão adequada da dívida é fundamental, independentemente do nível de austeridade que vier a ser escolhido.

Seguindo o manifesto há um ponto em que se fala em alternativa. Seria de imensa coragem que um grupo como este, dos subscritores, viesse criticar a gestão da dívida pública que tem sido seguida em Portugal. Serei dos maiores críticos de imensos serviços públicos portugueses, por razões diversas mas fundamentalmente pela sua falta de eficiência. Reconheço que estamos longe, muito longe, da tal reforma do Estado que todos dizem ser necessária e que ainda ninguém conseguiu executar devidamente, mas excluo desta critica, por razões óbvias, o trabalho da equipa que tem feito a gestão da nossa divida publica. Como financeiro, chego a achar estranho como é que a nossa economia se traduz numa taxa de juro a dez anos que ronda os 4,5%, e de facto só tem uma explicação, tem sido feito um trabalho notável na gestão da nossa dívida o que, mesmo atendendo aos desafios enormes que ainda teremos na economia, dá um descanso confortável a quem se propõe emprestar-nos dinheiro.

Quanto às condições de reestruturação (outra vez este termo imbecil fora do contexto), o abaixamento da taxa média de juro, alongamento dos prazos e “reestruturação” da dívida  acima de 60% do PIB: aqui acho que o documento mete um pouco os pés pelas mãos, o que entendo dada a diversidade de opiniões dos subscritores. Como principio não estou em desacordo com nenhuma mas vejamos: a taxa média de juro não é bem uma escolha nossa, se a queremos mais baixa temos que o merecer, caso contrário ninguém nos empresta. Há naturalmente exceções, quando recorremos à troika é porque achámos que precisávamos emitir a  uma taxa de juro mais baixa que a do mercado, e acho que fizemos bem, mas sabemos que isso não veio de borla, juntamente com a redução da taxa vieram as imposições ao governo do nosso país. É que não há outra forma, se queremos ter juros mais baixos ou melhoramos a economia ou abdicamos de parte da nossa autonomia a quem nos emprestar dinheiro. Quanto ao alongamento dos prazos é evidentemente uma falsa questão. Até em relação à troika conseguimos renegociar prazos e até acho que na altura certa. Fora do âmbito da troika já o fizemos milhares de vezes ao longo de muitos anos, é a parte mais visível da gestão da divida, trata-se da habilidade de emitir a tempo de pagar emissões anteriores que se vão vencendo. É o que às vezes se chama “rodar a dívida” ou, para os que gostam, “fazer o rollover”.

A “reestruturação” da dívida acima de 60% do PIB é o ponto mais curioso do documento, em que se apela ou defende uma maior integração dos Estados-membros. O documento não é explícito quanto à forma e eu posso estar a abusar na minha interpretação mas diz qualquer coisa como isto: bom era que a divida acima dos 60% fosse tratada pela Europa e não por cada um dos países. Esta relação de amor e ódio, por esta Europa, em especial pela Alemanha, que tanto nos dá e tira, tem forçosamente que evoluir. A delicadeza do assunto faz com que a maioria dos políticos assobie para o ar como se nada disto lhes dissesse respeito. Há que ter coragem e definir objectivos. A solidariedade entre países é bonita mas utópica e às vezes, muito a medo, lá vamos defendendo que bom era beneficiar dos dinheiros de umas obrigações transnacionais, uma coisa assim em que pudéssemos beneficiar do juro alemão mas mantendo o nosso risco. Infelizmente nestas coisas os benefícios vêm acompanhados de cedências. Num modelo do género de uma Europa federalista claro que poderíamos ter os mesmos juros que os alemães mas claro que também teríamos uma autonomia em proporção. Mas não há milagres e há que assumir, não se trata de negociar seja o que for, trata-se de mudar de modelo e ou queremos ou não queremos.

Apontar um caminho de maior integração europeia poderá ser um abuso na minha interpretação sobre o manifesto mas é sem dúvida uma discussão cívica do maior interesse.

Este documento é manifestamente triste, é o que é. Começa por chamar à atenção da inabilidade portuguesa desde os anos 70 de conseguir um orçamento equilibrado, uma violação clara de um principio constitucional, que penso que só não é mais falada por estar tão generalizada, depois foca a qualidade do remédio sem olhar para a doença, é que a dívida não é o nosso principal problema, essa temos nós gerido em condições, o problema é mesmo o que cria necessidades crescentes de dívida, para isso é que eu gostava de ver uma opinião tão consensual como esta, de gente de todos os quadrantes políticos. Por fim o uso de uma linguagem própria de quem não cumpre ou se prepare para tal, exatamente o que não precisávamos na atual conjuntura.

A minha primeira reação ao manifesto foi de indignação, pareceu-me do mais desonesto e aí estou ao lado dos que o consideraram “uma total irresponsabilidade” ou um “um acto de masoquismo”. Numa melhor leitura considero-o meio inócuo no conteúdo, mas de um elementar bom senso em boa parte das apreciações e argumentos. Quanto à linguagem, em especial ao chamar-se “reestruturação” a uma coisa que nada tem que ver, acho uma infelicidade, um ato antipatriótico, se o foi feito propositadamente.

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