Um ano de pontificado: “Vai, Francisco, e repara a minha casa em ruínas”

Num ano, a Igreja começou a mudar. Francisco mudou a forma de ser Papa. Colocou o Evangelho acima da doutrina. É um homem vindo do Sul, o que traduz uma viragem geopolítica.

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“Francisco é um homem do Novo Mundo”, frisa o jornalista Massimo Franco FILIPPO MONTEFORTE/AFP

Foi há um ano, pouco depois das 20h30. Houve o fumo branco. O cardeal Tauran pronunciou o Habemus Papam. Um homem de túnica branca, Jorge Mario Bergoglio, agora Francisco, avançou e saudou os fiéis: “Fratelli e sorelle, buona sera." (Irmãos e irmãs, boa noite.) Estas cinco palavras começaram a mudar a Igreja Católica. A multidão concentrada na Praça de S. Pedro percebeu e rendeu-se. “Nunca se vira um Papa tornar-se tão popular em tão poucos minutos”, resumiu Odon Vallet, historiador das religiões.

Bastaram 24 horas para que a imprensa o definisse como “um Papa de gestos” – gestos humildes que “prenunciam mudanças revolucionárias”. Francisco despoja-se da pompa. Reduz ao mínimo as insígnias pontifícias. Recusa viver “no palácio”. Muda a forma de ser Papa. Veste a pele de pastor, “próximo das pessoas como João XXIII” – o “bom Papa João”. A escolha do nome fez evocar o apelo que em 1205 mudou a vida do poverello de Assis: “Vai, Francisco, e repara a minha casa em ruínas.”

Escreveu a revista Time quando, em Dezembro, o elegeu a personalidade do ano: “O que torna este Papa tão importante é a rapidez com que captou a esperança dos milhões de pessoas que haviam perdido toda a esperança na Igreja.” Ou, na expressão de Enzo Bianchi, um monge leigo italiano, despertou nos católicos “o sonho de que uma outra Igreja é possível”.

Popular urbi et orbe
“Quanto desejaria uma Igreja pobre e para os pobres”, disse a 16 de Março, três dias depois da eleição. A sua primeira viagem apostólica, em Julho, foi à ilha de Lampedusa, onde desembarcam milhares de imigrantes. Foi “chorar os mortos que ninguém chora”. Disse o historiador católico Alberto Melloni que a homilia de Lampedusa foi “a homilia programática do pontificado”.

Não tocou só os católicos, mas quase todo o mundo. A sua popularidade, a começar pelas redes sociais, é enorme. Não apenas nos países do Sul. É aplaudido nos países ricos, que acusa de egoísmo. Interroga-se um jornalista: “Por que mistério o líder espiritual de uma religião em perda de velocidade suscita uma tal unanimidade em tantas regiões do mundo?” A que necessidade histórica ou inquietação humana responde? É mais fácil constatar do que responder. O carisma não basta.

Alguns pensam que ele está a dessacralizar a função do Papa, tornando-se demasiado próximo, uma “pessoa normal” como diz. Mas — e esse é o paradoxo — ao fazê-lo está a fortalecer a instituição.

“Graças ao Papa argentino (…) a Igreja transformou-se em poucos meses de ‘acusada global’, pelos escândalos de pedofilia e pela opacidade das suas instituições financeiras, numa autoridade moral de novo escutada e influente”, escreve o jornalista Massimo Franco num livro posto à venda esta semana: Il Vaticano secondo Francesco.

Depois da exortação apostólica A Alegria do Evangelho, publicada em Novembro e olhada por muitos como um libelo anticapitalista, o Financial Times homenageou-o em editorial. “Primeiro, há a sua modéstia pessoal. Numa era em que muitos estão profundamente preocupados com a vaidade das celebridades e a riqueza dos plutocratas, o Papa tornou-se rapidamente no símbolo global da compaixão e da humildade. (…) Muitos políticos conservadores discordarão da sua crítica ao ‘capitalismo sem freio’. Mas ele exprime as suas preocupações e ansiedades com uma sinceridade e uma autenticidade que nenhum outro líder mundial consegue igualar.”

O jornalista Eugenio Scalfari, agnóstico e laicista, fundador do La Repubblica, escrevia em Fevereiro com o seu peculiar exagero: “Roma voltou a ser a capital do mundo. Não é a Itália, mas Roma, a cidade do Papa Francisco, que é o centro do mundo; não Washington, não Brasília, não Moscovo, não Tóquio, mas Roma. Não acontecia há dois mil anos, mas agora é assim.”

Porquê? Porque o jesuíta franciscano está a fazer uma “revolução contra os mandarins do Vaticano” e contra “os interesses ilícitos, a vaidade dos poderosos, a demagogia, o simplismo, a inconsciência, a irresponsabilidade, o despotismo e o privilégio. Francisco é amigo dos não-crentes que combatem nesta batalha e estes são, por sua vez, amigos seus”.

Um homem do Novo Mundo
“Francisco é um homem do Novo Mundo”, frisa Massimo Franco. "Vem da Argentina, que é o Extremo Ocidente, e é um ‘padre urbano’, o primeiro pontífice filho de uma megalópole, Buenos Aires, com 15 milhões de habitantes, que viveu antecipadamente os problemas com que hoje se debatem a Igreja Católica e o mundo globalizado.”

Mas não é só um padre argentino, jesuíta e “global”. O ponto crucial é ser “um estrangeiro à mentalidade da Cúria romana e eleito depois do trauma da renúncia de Bento XVI. A sua tarefa é desmantelar a corte pontifícia e uma nomenklatura eclesiástica frequentemente virada para si mesma”.

O papado desloca-se para o Sul. Em 1910, viviam na Europa 65% dos católicos de todo o mundo. Hoje, são apenas 24%. De resto, o catolicismo europeu resiste mal à secularização e à crescente indiferença religiosa. Esta foi uma das preocupações centrais de Bento XVI. A Europa pode continuar a ser uma grande preocupação da Igreja, mas deixou de ser o seu centro de gravidade.

A reestruturação que está a ser operada por Francisco não deixa dúvidas. “O que era periferia de excêntrico torna-se central. É também uma “revolução geopolítica” — assinala Franco. Significa ainda a “exportação de uma visão radicalmente nova do catolicismo para o coração da Roma papal”.

Os dois papas
Quando Bento XVI resignou ao cargo, escreveu o vaticanista Sandro Magister: “Ao anunciar a sua demissão, Ratzinger modifica conscientemente a figura dos papas futuros. Doravante não haverá mais papas obrigatoriamente vitalícios, mas pontífices com um mandato limitado ao período em que sejam capazes de exercer a sua função. É uma profunda mudança.” O teólogo Vito Mancuso ia mais longe: “O gesto de Ratzinger, que é o gesto do homem que já não consegue ser Bento XVI, poderá ser o gesto que mudará o papado. Depois do que aconteceu, o Papa não pode continuar a ser um monarca infalível (…), deve tornar-se o intérprete de uma viragem no sentido colegial.”

A “violência” da renúncia de Bento abriu o caminho à eleição e às reformas de Francisco. Entre eles há continuidades e rupturas. As rupturas não são doutrinárias. Estão no “modo de ser Papa” e numa mudança de mensagem.

Bento quis reformar a Cúria e desistiu. Impôs “tolerância zero” no combate à pedofilia. Mas os seus actos e palavras não tinham a ressonância que Francisco lhes deu. Um exemplo: no dia 21 de Janeiro de 2013, Bento retomou, no conselho pontifical Cor Unum, os temas da sua encíclica Caritas in veritate, de 2009, em que abordou a crise económica. Disse nesse discurso: “Nos últimos séculos, as ideologias que celebravam o culto da nação, da raça, da classe social revelaram-se verdadeiras idolatrias. E podemos dizer o mesmo do capitalismo selvagem com o seu culto do lucro, que gerou crises, desigualdades e misérias.”

Francisco disse o mesmo, acrescentando um apelo sonoro contra “a tirania de uma economia que mata”. Foi ouvido e ficou no ouvido.

Os dois papas têm uma história diferente. Lembra o vaticanólogo Henri Tincq: “Tanto o alemão Ratzinger como o polaco Karol Wojtyla sofreram a provação dos totalitarismos — o nazismo e o comunismo — que alimentaram neles uma visão trágica da História, ligando a perda da razão, a morte de Deus e a aniquilação do Homem. Em Auschwitz ou no Gulag.”

Por isso os atormentou o “relativismo cultural” na Europa e a emergência da “primeira civilização ateia”, de que tanto falou o checo Vaclav Havel, em que o homem perde a dimensão da espiritualidade e o sentido da transcendência.
 Francisco vem do “outro mundo”, onde “a religião é popular, devocional, activa”. Testemunha os problemas da globalização. É diferente o modo como aborda os desafios do mundo moderno. Prometeu falar da Europa um dia destes.

Moral e doutrina
A primeira preocupação de Francisco é recentrar o catolicismo na mensagem evangélica e romper com “a Igreja dos interditos”. Defende a liberdade de consciência e adverte os padres: “A Igreja não é uma alfândega e há lá lugar para todos com a sua vida difícil.”

Este foi um dos pontos que maior ressonância teve no Ocidente. O Papa diz que não pode estar sempre a falar no aborto, no casamento gay ou nos métodos contraceptivos. Quanto aos homossexuais, lançou uma tirada que correu mundo: “Quem sou eu para os julgar?” Quer resolver o problema dos católicos recasados. Mas recusa as “soluções casuísticas”. Propõe um “debate aberto” sobre a família. Será este o tema do sínodo extraordinário dos bispos que decorrerá em Outubro, em Roma.

O Papa não tocou em nenhum ponto da doutrina. Espera-se dele uma Igreja mais aberta, mas não um liberalismo doutrinal. Apoiou o movimento dos católicos franceses contra as leis do aborto e do “casamento para todos”. O aborto? “Trata-se de uma questão de coerência interna da nossa mensagem e não devem esperar que a Igreja mude de posição.” Recusa-se a condenar as pessoas, o que é muito diferente.

A sua atitude é distinta das de João Paulo ou Bento. Estes – diz Henri Tincq – denunciavam a permissividade moral, a modernidade que substitui Deus pelo homem ou a “ditadura do relativismo”. Francisco quer mudar os termos do debate. Diz: “As lamentações que denunciam um mundo bárbaro acabam por provocar dentro da Igreja desejos de ordem, entendida como pura conservação, ou uma reacção de defesa.” Não aceita que a Igreja se feche, exige que saia para fora com vocação missionária — pregar os valores evangélicos.

Sublinhou Francisco que ensinamentos dogmáticos e ensinamentos os morais não são equivalentes: “Devemos encontrar um novo equilíbrio, senão o edifício moral da Igreja corre o risco de se desmoronar como um baralho de cartas.” Não renuncia aos dogmas, mas recusa que eles se tornem uma “obsessão”.

As reformas da Igreja
Estamos muito longe de poder fazer um balanço das reformas que, no essencial, estão em fase de projecto e que, de resto, demorarão anos. Mas os sinais estão dados e a reforma da Cúria está em andamento. Durante um ano, de forma doce, Francisco demoliu hábitos com uma marcha de bulldozzer.

São muitos os temas, como a restauração da colegialidade ou a ascensão das mulheres aos cargos de decisão — “A outra metade do mundo não pode continuar a ser excluída”. E, entretanto, repensar a função pontifícia. Ou acabar com o “clericalismo” e com a Igreja fechada em si mesma. O debate será duro. A Igreja não é monolítica. Nem o Papa pode tudo. Para lá dos conservadores dogmáticos, muitos aceitam que “tudo mude para que tudo fique na mesma”.

A jornalista Isabelle de Gaulmyn resume assim o problema: “Se o Papa Francisco conseguir renovar a Igreja, não será impondo mudanças doutrinais, mas indicando o modo de ser cristão.” Significa colocar “o Evangelho acima da doutrina”.

A Igreja e a História
É bom ter presente uma perspectiva histórica. O cristianismo é diferente das outras religiões, escreveu o medievalista Jacques Le Goff, também biógrafo de S. Francisco, após a resignação de Bento XVI. “Primeiro o cristianismo distingue o que pertence a Deus e o que pertence a César, não confunde política e religião. Em segundo lugar, não obstante os atrasos e a lentidão, não obstante as crises que fustigam as religiões, ele soube sempre adaptar-se às mutações profundas do mundo. E creio que estamos a assistir a um destes acontecimentos plurisseculares característicos do cristianismo.”

Notícia corrigida às 17h57: no terceiro parágrafo, onde se lia "monge laico" lê-se agora "monge leigo".

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