Diálogos entre o passado e o futuro

Uma ponte entre Beethoven e o século XXI em dois concertos excelentes.

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Quarteto Diotima DR

Quarteto Diotima. Obras de Schoenberg, Boulez e Beethoven. Lisboa, Grande Auditório Gulbenkian, 9 de Março, às 21h. 5 estrelas Remix Ensemble Casa da Música. Peter Rundel (direcção).33 Variações sobre 33 Variações, de Hans Zender/Beethoven. Lisboa, Grande Auditório Gulbenkian, 10 de Março, às 21h. 4 estrelas

Um aliciante ciclo de música de câmara a cargo do Quarteto Diotima (dedicado a Beethoven, Schoenberg e Boulez) e a visita do Remix Ensemble Casa da Música, com as 33 Variações sobre 33 Variações, uma “interpretação composta” por Hans Zender (n. 1936) sobre as Variações Diabelli de Beethoven, constituíram momentos recentes de altíssimo nível da temporada Gulbenkian. Infelizmente, mesmo com Beethoven como um dos eixos de ambos os programas, o público que acorreu ao Grande Auditório foi escasso: a música de câmara e a música dos séculos XX e XXI continuam a movimentar audiências restritas em comparação com os concertos orquestrais, os grandes pianistas ou as estrelas do canto. Uma cultura musical mais sólida e abrangente e uma aproximação à música também pela via do desafio intelectual, para além das emoções imediatas, contribuiriam decerto para suscitar uma maior adesão em domínios que se situam para além dos caminhos óbvios do mainstream.

O programa do Quarteto Diotima prestou homenagem ao Quarteto Kolish, a quem a pianista e mecenas Elizabeth Sprague Coolidge encomendou, em 1936, uma série de quatro concertos, cujo repertório incluía os últimos quartetos de Beethoven e os quartetos de Schoenberg. Além disso, o Quarteto Diotima solicitou a Pierre Boulez uma nova versão do seu Livre pour Quatuor, recentemente gravado pelo agrupamento. Documentários sobre o legado de Schoenberg e o testemunho da filha do compositor (Nuria Schoenberg Nono) complementam um fim-de-semana em cheio. No concerto de domingo à noite, o Quarteto Diotima revelou um domínio técnico excelente e um conhecimento muito profundo das obras no plano estrutural e estilístico. O grupo apresenta grande coesão, mas em geral os violinos brilharam mais no que diz respeito à sonoridade. Tanto no Quarteto n.º 4 de Schoenberg, admirável ponte entre a herança clássica e o dodecafonismo serial, como na intrincada IV Parte do Livre pour Quatuor, de Boulez, o Quarteto Diotima mostrou apurada precisão rítmica, atenção minuciosa ao detalhe das articulações, dinâmicas e efeitos e um amadurecimento do discurso, que contribuiu de forma decisiva para tornar estas obras sedutoras ao ouvinte. Foi porém com o Quarteto n.º 15, op. 132, de Beethoven, que o agrupamento se superou numa interpretação notável percorrida pela transparência da arquitectura musical, mas também por todo um caleidoscópio de emoções e de universos contrastantes: desde as texturas mais abstractas à recriação de categorias musicais como o Ländler, a Musette ou a Marcha, passando pelo sublime Molto Adagio, tocado com envolvente intensidade expressiva. Apesar do arrojo das restantes obras, Beethoven não deixa de nos surpreender pelo carácter visionário da sua música.

O mesmo sucede nas famosas 33 Variações sobre uma Valsa de Diabelli, nas quais Beethoven levou o conceito de variação por alguns caminhos nunca antes imaginados. Depois de uma versão algo controversa da Viagem de Inverno, de Schubert, à qual chamou “uma interpretação composta”, o  compositor e maestro alemão Hans Zender seguiu um caminho idêntico, escrevendo 33 variações a partir das Variações Diabelli de Beethoven. O desafio foi lançado pelo Ensemble Modern, que estreou a obra em Berlim em 2011, e o Remix Ensemble fez agora a primeira audição em Portugal na Gulbenkian e na Casa da Música, sob a direcção de Peter Rundel. No concerto de Lisboa, defendeu a obra com enorme vivacidade e consistência técnica, acentuando os seus abruptos contrastes. Entre outros pontos dignos de nota, destacam-se os eloquentes solos dos trompetes na Variação 31, as intervenções do acordeão e o papel determinante da percussão. Na última variação, o som do piano (fora do palco) surge como fantasma pairante que emerge das profundezas da história em momentos de surpreendente efeito. Alguns momentos da recriação de Zender deixam o ouvinte perplexo e parecem aproximar-se perigosamente do limiar da destruição da obra, mas logo de seguida transitam para o reencontro através de reminiscências e elaborações inesperadas do material musical, frequentemente carregadas de irreverência e ironia, num diálogo estimulante entre o passado e o futuro.

 

 

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