Há cada vez mais famílias sem RSI por causa de erros e atrasos nos serviços

Burocracias inerentes à renovação anual dos pedidos provocam atrasos e erros que levam ao corte automático da prestação. Em Outubro, o Instituto de Segurança Social admitia “casos pontuais”. Hoje são “aos milhares”, segundo assistentes sociais.

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RSI tem vindo a ser cortado, sem qualquer aviso prévio, a beneficiários cuja condição não sofreu qualquer alteração Paulo Pimenta
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Manuel de 59 anos dorme num campo de futebol Paulo Pimenta
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Laura Daniela de 26 anos guarda as facturas numa gaveta Paulo Pimenta
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Maria Luísa, de 58 anos, vai comendo de forma intermitente. “Às vezes, a minha filha mais velha, quando lhe sobra comida, telefona: ‘Mãe, anda cá, que tenho qualquer coisa para ti’”. As facturas da água e da luz de Laura Daniela, de 26 anos, estão numa gaveta, a ameaçar cortes no fornecimento destes serviços. “O meu menino vai à avó comer. Hoje, por acaso, a minha cunhada emprestou-me dez euros e vou poder ir ao supermercado”. Manuel, de 59 anos, dorme nas instalações de um campo de futebol e, em termos alimentares, safa-se numa cantina comunitária. “Pago 15 euros por mês para almoçar todos os dias, mas se continuar sem receber…” Em comum, estas pessoas têm o facto de lhes ter sido cortado o Rendimento Social de Inserção (RSI). Sem qualquer aviso prévio. E não é que tenham deixado de cumprir os requisitos legais para receber aquela prestação. O problema é que o processo se tornou tão complexo que os técnicos deixaram de conseguir cumprir as formalidades necessárias nos prazos legais.

“Com a regulamentação da nova legislação, (…) são todos os dias excluídos milhares de pobres deste apoio [RSI] económico de miséria. Os beneficiários renovam o seu pedido de esmola ao Estado, mas, mesmo assim, porque não são convocados atempadamente pelo técnico gestor para assinarem o chamado ‘contrato de inserção’, ficam automaticamente com este apoio cessado sem um único tostão para sobreviverem”, denunciou José António Pinto, assistente social na Junta de Freguesia de Campanhã, uma das mais pobres do Porto, em artigo de opinião assinado no PÚBLICO.

A situação não é nova – aliás, foi noticiada pelo PÚBLICO em Outubro de 2013, com o Instituto de Segurança Social a admitir apenas “casos pontuais” –, mas tem-se agravado. E muito. “Muitos beneficiários reclamam, mas, mesmo assim, esperam quatro e cinco meses para os serviços corrigirem este erro de funcionamento”, insiste José António Pinto. “São cada vez mais os casos”, confirma outro assistente social, que pede para não ser identificado. “Com as novas regras [em vigor desde Julho de 2012], o processo de atribuição do RSI complexificou-se propositadamente. Quando há uma falha, o sistema informático deixa imediatamente de pagar. As pessoas nem sequer são informadas. Basta, por exemplo, que ocorra um problema no cruzamento de dados com o IEFP, que leva a que o sistema não reconheça que aquela pessoa está inscrita no centro de emprego. Para voltar a receber aquela prestação, é um problema sério. Desde logo, porque é preciso que o IEFP, que também está assoberbado, reconheça o erro. É verdade que, uma vez regularizada a situação, o beneficiário recebe com retroactivos, mas ninguém come retroactivamente”, denuncia.

Há oito anos que gere processos de RSI numa entidade que tem um protocolo de colaboração com a SS. “É curioso: tenho neste momento menos processos de RSI e mais dificuldades em dar conta de tudo o que me é exigido. E não noto que a qualidade do meu trabalho tenha aumentado. A única coisa que hoje é controlada são os prazos, a utilização dos formulários mais adequados, a correcta informatização dos processos”.

As dificuldades agravam-se porque a maior parte dos processos de RSI está a ser gerida por técnicos alheios à SS. “Dão-nos uma password de acesso a uma plataforma online, mas onde a informação disponível é pouca, ou seja, quando os beneficiários vêm reclamar, nem sequer os conseguimos esclarecer sobre as razões desse corte”.  

Uma explicação é o que falta a Laura Daniela. “Assinei um pedido de renovação em Julho e em Outubro comecei a receber. Até Janeiro. Agora, quando lá fui perguntar por que é que deixei de receber, a ‘doutora’ diz-me que é preciso renovar outra vez. Mas nem sequer um ano passou”, estranha. Privada dos 320 euros que recebia mensalmente, juntamente com o companheiro e o filho de nove anos de idade, já deixou de pagar os 190 euros pela renda de casa em que vive, na freguesia de Campanhã, no Porto. Uma sala que é um corredor, dois quartos enegrecidos pela humidade. As facturas da água e da luz já ameaçam corte. “O que me vale é que a avó do meu menino nunca lhe negou comida”. E o resto da família como é que se aguenta? “Pede-se cinco aqui, cinco ali e depois, quando vier, paga-se a quem se pediu…”  

A Maria Luísa Sousa Ferreira também ninguém soube explicar por que deixou de receber o RSI. “Fiz tudo o que me pediram, entreguei os papéis todos. A minha situação é a mesma, com a diferença do meu marido, que se enforcou fez ontem dois meses. Terá sido por causa disso?” Sem o subsídio de desemprego que o marido ainda recebia, e privada do RSI, vale-lhe a filha. “Uma sopa, uns ovos, vai dando alguma coisa…”

A Manuel também cortaram o RSI. Também sem fundamentação aparente. “Os 178 euros e 15 cêntimos que me davam é que me ajudavam no dia-a-dia…” Não tem renda para pagar porque também não tem casa. Dorme nas instalações do campo de futebol Mário Navega, no Porto. “Lavo as roupas dos jogadores, as toalhas, limpo os balneários. Em troca, deixam-me lá ficar”. É com as esmolas dos jogadores que se tem aguentado desde que, no mês passado, lhe cortaram o RSI. “Eu dei a morada da sede do clube, mas estou a dormir no campo. Terá sido por causa disso?”.

Até ver, e enquanto não virem reposta aquela prestação pecuniária, Manuel, Maria Luísa e Laura contribuem para contínua redução do número de beneficiários do RSI: eram 317.722 em Janeiro de 2012, passaram a 280.927 em Janeiro de 2013 e, no último mês de Janeiro, eram apenas 228.396. Quanto às razões para esta descida contínua, numa altura em que a pobreza tem aumentado, o Instituto de Segurança Social nada adiantou. Já a Associação dos Profissionais do Serviço Social, presidida por Fernanda Rodrigues, aponta razões ideológicas. “O normal seria que o RSI estivesse a funcionar em contraciclo com a pobreza, transformado, portanto, numa medida mais ágil. Mas o que se verificou foi o contrário: os procedimentos administrativos e burocráticos estão a afundar ainda mais as pessoas. E não é porque falta dinheiro, é porque foi feita uma escolha política”, conclui. 

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