Smartphone sem bateria

Acordar hoje, na omnivigência dos smartphones, já não se resume ao simples acto de abrir os olhos. É claro que nunca foi apenas isso. A retracção involuntária das pálpebras é usualmente seguida do ímpeto deliberado de as fechar, ao qual o corpo reage puxando as cobertas até ao queixo e fingindo-se de morto, para ver se a vida não repara.

A fisiologia do despertar, no entanto, tem vindo a assumir uma nova configuração. O cérebro está agora treinado a emitir ordens, mal se abre meio olho, para que se estenda um dos braços à procura do smartphone na mesa-de-cabeceira. Com três quartos de íris à mostra, já há condições para conferir a hora e se alguém telefonou. Com 90% de abertura, senta-se na beira da cama e verificam-se mensagens que naturalmente não existem, pois todos que as poderiam mandar também estavam a dormir. E com visão plena, embora ainda turva de sono, abre-se a caixa de e-mails, para constatar, mais uma vez, que 99,9% do que entrou durante a noite é lixo.

Até ao final do pequeno-almoço, já estão vistas as manchetes dos jornais, reflectindo o que se tinha lido no mesmo smartphone na noite anterior, e já se pôde conferir a abertura das bolsas e a cotação do rand sul-africano, confirmar as banalidades do Facebook e a inutilidade do Linkedin e praticar estratégias de gestão empresarial em duas rondas de Candy Crush e Flappy Bird.

Por essas e outras, quando acordei e vi que o smartphone estava sem bateria, senti-me literalmente descalço. Não ter à minha disposição, naquele momento, serviços tão indispensáveis das apps e das redes sociais era como se me tivessem amputado um membro. A máquina lá estava, mas inanimada, em inércia glacial.

Procurei o carregador, e nada. Abri armários e gavetas, até dar com uma caixa contendo um emaranhado de fios e fichas. Os que estavam mais no fundo eram transformadores antigos dos mais diversos aparelhos – electrodomésticos, rádios-relógios, aparelhagens de som, brinquedos, todos extintos. Na camada superficial jaziam, em número maior, carregadores sobretudo de telemóveis e computadores que igualmente já foram desta para melhor.

Tal estratificação conduziu-me a três conclusões elucidativas. Primeiro, a de que o tipo de equipamento que prepondera no menu das modernidades domésticas varia com o tempo – ilação de singular brilhantismo, aliás. Segundo, a de que estamos cada vez mais ligados à corrente. E terceiro, a de que hoje dependemos umbilicalmente da electricidade para dispositivos que nos aproximam virtualmente mas nos afastam presencialmente.

Não poderia haver conjugação pior para aspirações sustentáveis. São vários computadores, telemóveis, smartphones, tablets e aparentados digitais, multiplicados pela dimensão e afluência de cada domicílio. O consumo de energia é inversamente proporcional à interacção familiar. E dada a competição, a ficha de electricidade tornou-se num item de tal modo precioso, que não falta muito a que passe a bem transaccionável.

Fichas, eu tinha várias à minha disposição. Não encontrava era o carregador. “Deixei no jornal”, concluí, em desespero. Quando cheguei ao trabalho, porém, nem sinal do aparelho. Fui encontrá-lo afinal na mochila, onde sempre esteve, às minhas costas.

Idioticamente desconectado, perdi uma manhã toda. Fui obrigado a ler um bocado de um livro ao pequeno-almoço, a folhear uma revista no elevador, a admirar o mar pela janela do comboio, a sentir a Primavera a chegar, a observar pessoas na rua e até a falar com algumas delas. Uma chatice pegada.

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