As provações que aguardam a Ucrânia

Foto
Depois da revolução e dos mortos, os desafios do futuro DIMITAR DILKOFF/AFP

Após a proclamação da independência, em Dezembro de 1991, os ucranianos apostaram ser o “interface” entre a Rússia pós-soviética e a nova Europa saída da Guerra Fria, conjugando uma identidade europeia com os laços históricos e económicos que os ligam à Rússia. O lema passou a ser: “Dentro da Europa e perto da Rússia.” Os povos não escolhem a sua geografia nem os vizinhos.

Os desafios que agora se colocam à Ucrânia são desesperadamente mais difíceis do que destituir Viktor Ianukovich. Kiev conta com os ocidentais para travar Moscovo, pelo menos nos próximos tempos. Mas não confiam cegamente. Conhecem a fraqueza política da UE, sentem que os americanos estão longe e a Rússia mesmo ao lado. Levam a sério os discursos de Moscovo considerando a “perda” da Ucrânia como uma “ameaça à sua segurança nacional”, porque este é um sentimento largamente partilhado pelos russos. Sabem ainda que o projecto de uma união aduaneira, antecâmara da União Euro-asiática que integraria Kiev no espaço de influência russo, é a trave mestra da política de Vladimir Putin para restabelecer a “potência russa”. E não crêem que ele desista de interferir na Ucrânia.

Este não é o seu único problema. O mais urgente é a economia, à beira de um colapso total. O sistema político — a “democracia dos oligarcas” — está esgotado e bloqueará quaisquer reformas. O novo e frágil governo conseguiu uma pausa de estabilidade, atenuando as tensões entre o Leste e o Oeste do país. Perdida a Crimeia, a prioridade centra-se nas populações russófonas do Leste, onde é forte a influência de Moscovo. Aguarda-se, enfim, a simbólica assinatura do acordo de associação com a UE e a “injecção” de empréstimos internacionais para evitar a bancarrota.

Mas continuará em aberto uma questão chamada Ucrânia.

Rússia e Europa
O primeiro dado a ter em conta é a estratégia tradicional de controlo da Ucrânia pela Rússia. Estão na memória espectaculares acções punitivas como o corte do gás ou a “guerra alfandegária” imposta no ano passado para travar o acordo com a UE. Estes são instrumentos de excepção. A norma era outra: manter uma “Ucrânia fraca”, com um elemento de “instabilidade controlada”, escreve Andrew Wilson, do Conselho Europeu de Relações Externas. A ajuda russa foi sempre para “manter o regime a flutuar”, reforçando a sua dependência.

Dois especialistas polacos, Wojciech Kononczuk e Tadeusz Olszanki, faziam em Janeiro a mesma análise: “Uma Ucrânia autoritária, corrupta, opaca e politicamente instável, incapaz de fazer as reformas estruturais de que desesperadamente necessita, é a melhor garantia de que o país ficará fora da órbita da UE — ou até na esfera de influência da Rússia.”

“Todas as alavancas da Rússia na Ucrânia foram inteiramente fabricadas por ucranianos”, confirmam Samuel Charap e Keith Darden, do Instituto Internacional de Estudos Estratégicos, de Londres. “A eficácia da coerção económica [de Moscovo] não deve ser creditada à força russa; é antes o reflexo da completa falência da elite ucraniana para reformar a economia do país.”

A economista ucraniana Olga Shumylo-Rapiola explicou que a recusa da adesão à Parceria Oriental da UE, em Novembro, não se deveu apenas às pressões russas mas aos oligarcas: “Kiev não quer reformas.” Os grandes oligarcas, como Rinat Akhmetov e Dmitro Firtach, os principais financiadores do Partido das Regiões, de Ianukovich, hesitaram mas acabaram por recusar: não lhes interessava mudar o quadro legal dos negócios e, sobretudo, detestavam a palavra “transparência”. Nos índices mundiais da corrupção, a Ucrânia surge no 144º lugar — em 177.

A “atracção europeia” não se deve apenas a uma partilha de valores e a uma vontade de maior independência. A maioria dos ucranianos admira e inveja a recuperação económica da Polónia ou da República Checa. Mas a Ucrânia não fez as reformas do Leste europeu após a queda do comunismo.

Estas reformas não são as da crise do euro. Trata-se da reestruturação da economia e das suas regras — e será muito duro. Uma sondagem feita em 2013 dava resultados interessantes. A adesão à união aduaneira russa ou ao acordo de associação com a UE partiam o país ao meio: 37% para a primeira opção, 39 para segunda. O apoio à primeira opção era esmagador no Leste. A escolha da UE era muito alta na Ucrânia ocidental e central.

No Leste, não pesavam apenas os laços com a Rússia. As pessoas temiam que as reformas levassem ao desmantelamento de várias indústrias. A economia é fortemente subsidiada. “Não estamos contra a UE mas não podemos aceitar as condições que nos põem de cortes salariais e redução de postos de trabalho, combinados com uma alta dos preços”, dizia um trabalhador a um jornal.

Oligarcas
“É impossível compreender a Ucrânia moderna sem compreender a teia de dependências entre as elites políticas e o mundo dos negócios”, explica Wojciech Kononczuk. “A interacção entre os interesses dos oligarcas é o verdadeiro mecanismo que molda a política ucraniana.” Os oligarcas são, inclusivamente, mais relevantes na cena política do que os próprios políticos.

Não se limitam a financiar os partidos e políticos. A sua opinião é determinante na tomada de dicisões. “É difícil identificar uma força política importante que esteja interessada na ‘desoligarquização’ da Ucrânia e — o que é crucial — tenha instrumentos para levar a cabo tal mudança.”

O que se passou com a queda de Ianukovich é a melhor ilustração. Os oligarcas deixaram-no cair não só porque lhes era inútil mas se tornara nocivo aos seus interesses. Rinat Akhmetov deu o exemplo, apelando à defesa da “integridade territorial da Ucrânia”. Escreveu: “A unidade da sociedade, do mundo dos negócios e das autoridades é a nossa força.”

Logo a seguir à ocupação da Crimeia, foi selada uma aliança entre o novo governo e os oligarcas. Não foi surpresa, foi uma viragem. Iulia Timochenko, acabada de sair da prisão, também ela antiga oligarca, foi o pivot da manobra. Telefonou aos bilionários. O governo, muito frágil, delegou imediatamente em grandes oligarcas o governo das regiões mais sensíveis, sobretudo no Leste. Foi uma manobra de antecipação para prevenir referendos regionais separatistas.

As instituições
A Ucrânia tem uma sociedade dinâmica e culta. Mas a economia está em ruínas e muito distantes da Europa estão as suas instituições. O actual governo é composto por políticos do “sistema”, fiéis aos antigos hábitos, e por bandos armados. A unidade das mais heteróclitas forças foi imposta por uma emergência nacional. Em breve se levantará a questão da legitimidade. Os ucranianos estão cansados da corrupção, do clientelismo e da ilegalidade que marcaram a era pós-soviética.

O movimento “Euro-Maidan” derrubou Ianukovich mas não fez uma reforma política. Sem uma economia viável e instituições funcionais, a Ucrânia permanecerá altamente vulnerável às interferências de Moscovo. Anunciam-se vários riscos. Um deles é a parlamentarização do regime por oposição ao autoritarismo de Ianukovich, o que ameaça paralisar o governo e a tomada de decisões numa fase crucial da sua história.

Por fim, uma má notícia para Putin: a ocupação da Crimeia mudará o mapa eleitoral ucraniano, em favor dos “ocidentalistas”. Resume um analista: “Se a Crimeia sai da Ucrânia, a Ucrânia afasta-se mais da Rússia.”

Sugerir correcção
Comentar