A Europa joga o seu destino na Crimeia

Não é demais lembrar que o que está em jogo nesta crise é o futuro da Europa e o futuro da relação transatlântica.

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1. Escrevi muitas vezes que a Europa, distraída com a sua crise existencial e (mal) habituada a ter a sua segurança garantida pelos EUA, passou os últimos anos a ignorar as enormes mudanças do mundo à sua volta. Não viu chegar as Primaveras árabes, não definiu uma estratégia para influenciar a sua evolução, ignorou a ameaça terrorista que se instalava nos Estados-falhados na região do Sahel. E nem sequer se deu ao trabalho de rever a sua “estratégia de segurança” de 2003 e já largamente ultrapassada pelas mudanças internacionais.

Apesar da Líbia ou do Mali, não fez qualquer esforço para se adaptar à nova doutrina de Washington que lhe atribuiu muito mais responsabilidade pela segurança regional. Confesso que nunca pensei que a crise que se trava hoje na Ucrânia nos entrasse pela porta dentro numa dimensão e numa gravidade para a qual essa ausência de estratégia se torna dramaticamente visível. É, já ninguém tem dúvida, a maior crise vivida na Europa desde a queda do Muro. Que põe em causa as fronteiras estabelecidas desde o fim da Guerra Fria (e a Europa sabe, melhor do que ninguém, o que isso significa) e que apanhou os europeus absolutamente de surpresa. Desta vez, não vai ser fácil resolvê-la apenas pelo método preferido: deixar andar.

Em boa verdade, esta distracção traz consigo um profundo ensinamento. Apesar da estratégia de Putin para a reconstituição de um novo “império russo”, capaz de apagar as consequências da implosão da União Soviética (“a maior tragédia geopolítica do século XX, nas suas próprias palavras), a União foi fechando os olhos. Primeiro, apostou numa “parceria estratégica” com Moscovo assente nos “valores comuns”, indiferente ao endurecimento do regime. Putin chegou a ser um “democrata” quando Jacques Chirac e Gerhard Schroeder caíram na asneira de o incluir num chamado “eixo da paz” em oposição à guerra de Bush no Iraque (2003). Mudou de agulha para uma abordagem mais realista. Os direitos humanos e a democracia foram guardados na gaveta. Os negócios subiram para o topo da lista de prioridades dos países europeus, grandes ou pequenos. Obama, chegado à Casa Branca, carregara no botão do “reset”, pondo termo a um período de maior hostilidade entre Washington e Moscovo. O parêntese Medvedev permitiu realizar uma “histórica” cimeira da NATO em Lisboa (2010) que, como muita gente escreveu, era o verdadeiro fim da Guerra Fria. Já tinha ficado para trás a estratégia americana de alargar continuamente a NATO, incluindo a Ucrânia e a Geórgia. A Alemanha foi fundamental para convencer George W. Bush, na cimeira de Bucareste (2008), de que era preciso levar em conta os interesses russos e a sua percepção de “cerco”. A União Europeia era vista como a via preferencial para integrar progressivamente esses países, na medida em que não aparecia aos olhos dos russos como uma instituição militar. O mundo, entretanto mudava a uma grande velocidade. A China emergiu como a principal candidata a “superpotência”, tirando todo o proveito da globalização. Obama definiu a sua integração na ordem internacional como o maior desafio estratégico dos EUA. A União Europeia mergulhou na crise mais grave da sua história, isolando-se ainda mais do mundo à sua volta. A burocracia de Bruxelas e as relações bilaterais dos grandes países europeus não permitiram uma visão global do relacionando com a Rússia, capaz de integrar a economia e a segurança. O aparente sucesso da “revolução laranja” (2004) tinha convencido a Europa de que tudo estava bem na “frente leste” e nem sequer a invasão da Geórgia em 2008 e a eleição de um Presidente pró-russo na Ucrânia em 2010 a fez parar para pensar.

Vladimir Putin engoliu o revés ucraniano mas não abandonou a sua estratégia de reconquista das zonas de influência russas (na Europa, no Cáucaso e na Ásia Central). Desta vez, parece não estar disposto a recuar à espera de melhor oportunidade. A criação da União Euroasiática como um pólo de poder ao nível do Ocidente e da China só faz sentido se tiver lá dentro os países europeus, dividindo a Europa em duas, ainda que um pouco mais a Leste do que a antiga Cortina de Ferro. Nunca lidou bem com a perda de influência sobre os antigos satélites europeus, que trataram de se integrar nas instituições ocidentais (União e NATO) antes que fosse tarde de mais. A Europa não levou em conta a sua especial sensibilidade face a Moscovo. Ouvi muitas vezes altos responsáveis queixarem-se da obsessão desses países em continuarem a olhar para a Rússia como uma ameaça. Agora, foi a Europa que apanhou um grande susto.

2. Até agora, a Europa e os Estados Unidos estão a agir em uníssono face à ofensiva de Putin. Há muito tempo que um comunicado no final de um Conselho Europeu sobre um problema internacional não era tão claro e tão conciso. O palavreado habitual, capaz de dizer tudo e o seu contrário, deu lugar a uma avaliação comum e a medidas concretas. Não importa se a reunião foi “tempestuosa”, como disse o primeiro-ministro polaco. A coordenação transatlântica está a fazer-se. Ela é a mais eficaz forma de pressão sobre Putin, que está a desafiar Obama e a contar com a habitual fraqueza dos europeus, que não sabem falar a linguagem da força nem estão preparados para pagar o preço que sempre custa a segurança.

Mas estamos ainda muito longe do fim da crise. Os EUA e a Europa têm um espaço de tempo muito curto para definir o passo seguinte, face à convocação de um referendo na Crimeia para o próximo dia 16, que Putin quer que seja um facto consumado, para lhe mostrar que só tem a perder (o que é verdade) se insistir na sua anexação.

Dizem os analistas, por necessidade de simplificação, que Kiev se transformou no lugar geométrico de um novo confronto Leste-Oeste. Não é totalmente verdade. O que está em causa neste braço-de ferro entre Putin e Obama é precisamente a Europa: a sua unidade enquanto entidade política e o futuro da própria aliança transatlântica. O problema é saber se, em Berlim, também se pensa assim. A Alemanha comporta-se um pouco como uma “potência emergente” que, para além da sua capacidade económica, ainda não se adaptou às novas responsabilidade políticas que a liderança europeia também lhe exige. É um desafio para o qual a chanceler pode não estar preparada. O SPD, seu parceiro de coligação, tem historicamente uma corrente que privilegia as relações com a Rússia em detrimento da velha aliança com os EUA. Berlim pode ter um papel decisivo na procura de uma solução que leve em conta os interesses da Rússia, mas também pode inviabilizar qualquer estratégia de médio prazo que defina as bases de uma relação com Moscovo assente no respeito pelo direito internacional e pela independência dos países que se situam no seu “estrangeiro próximo”. A presença de Iulia Timochenko em Dublin (no Congresso do PPE) ou o convite ao primeiro-ministro do governo provisório de Kiev para ir a Bruxelas no dia do Conselho Europeu extraordinário, traduzem firmeza política. Mas não é demais lembrar que o que está em jogo nesta crise é o futuro da Europa e o futuro da relação transatlântica.

Judy Dempsey, analista do Carnegie, fazia uma simples pergunta: “Putin vai finalmente fazer a Europa despertar?”. É esta a questão fundamental.

Jornalista

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