Maré: a favela de todas as facções armadas que a polícia ainda não conseguiu tomar

À esquerda,Terceiro Comando. À direita, Comando Vermelho. Atrás, Amigos dos Amigos. E ainda há milícia. Isto é o Complexo da Maré e redondezas. Um lugar onde a polícia não manda. “Rolê” com Cadu Barcellos, que foi daqui directo para Cannes.

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No Complexo da Mará moram 140 mil pessoas Reuters

Cadu aparece na Passarela 8, alto, esguio, boné, barba: Cadu Barcellos, 26 anos, cineasta, da Maré para o mundo. A primeira vez que saiu do Brasil foi directo para Cannes. A Maré não é só uma favela, é um complexo de favelas. Na geografia local, vai da Passarela 6 à Passarela 13, passagens aéreas para atravessar a pé a Avenida Brasil, grande via de entrada e saída do Rio de Janeiro.

As passarelas também servem como fronteira das facções armadas — traficantes de droga e milícia —, que mandam na Maré há décadas. Por exemplo, Passarela 8 ainda é Terceiro Comando. A partir da 9 estamos em território do Comando Vermelho. Lá bem no final, na 13, há milícia. E numa favela colada ao complexo estão os Amigos dos Amigos (cisão do Comando Vermelho). Maré e redondezas fazem o pleno.

Para Cadu isto é um bê-á-bá, o mundo dele desde que nasceu. E quem mora aqui sabe bem por onde circula. “Nego de camiseta listrada [clichê de quem está associado ao tráfico] vai para o outro lado onde não conhece muita gente e se sente um corpo estranho.” Não é o caso dele. “Vivo indo e voltando, falo com Terceiro Comando, falo com Comando Vermelho...”

Quando fez os seus filmes teve de negociar com eles, ter luz verde para ir e vir. Foi como um dos cinco realizadores de 5 x Favela que esteve em Cannes, em 2010. “O filme ganhou mais de 20 prémios mundo fora”, diz, enquanto subimos a Rua Nova Jerusalém.

Subir não é uma palavra muito comum na Maré, porque a Maré não é morro, é uma vastidão plana. Mas tem um morrinho, o Timbau, onde aliás tudo começou, nos anos 40. É que aqui era Baía da Guanabara, as primeiras construções foram no alto, por causa da água, antes dos aterros e da construção da Avenida Brasil.

Moram 140 mil pessoas na Maré. Já esteve anunciada por várias vezes a instalação de uma UPP (Unidade de Polícia Pacificadora, projecto governamental para conquistar território ao poder paralelo armado, em curso desde 2008). Acabou por nunca acontecer, e, em entrevista ao PÚBLICO, o secretário de Segurança e rosto das UPP, José Mariano Beltrame, admitiu que ficou difícil, com tantas facções.

“Querendo, eles conseguem”, resume Cadu, colado à sombra, porque às 10h já está um solzaço. “Mas será que querem? Para querer tem de arregaçar as mangas.” Meninos pela mão dos pais, velhinhos em botecos, cheiro a sabão. Para quem vem do centro histórico do Rio — tomado pelo lixo do Carnaval, por causa da greve dos garis (homens e mulheres do lixo), além dos sem-abrigo e viciados em crack que vagueiam pelas ruas —, o Morro do Timbau parece uma aldeiazinha simpática e limpa.

“A gente fez uma exibição do 5 x Favela na Maré”, diz Cadu. “As pessoas discutem muito aqui. É a favela mais académica e intelectual que tem no Rio, por conta dessas ONG.” Aqui nasceu o Observatório das Favelas, fundado pelo geógrafo Jailson de Souza e Silva, ou a Redes da Maré, entre dezenas de outros projectos activos. “Tem um índice de mestrandos, doutorandos e vestibulando muito grande.” Cadu a dizer isto e do nosso lado um garoto com uma espingarda a entregar um pacote a outro. Tudo isto convive.

Já no cimo, uma carrinha de gás a fazer entregas, igrejas evangélicas, paredes pintadas com bonecos, uma galinha. Entre tijolos, de repente, uma vistaça para toda a planície, aquilo que se chama Baixa do Sapateiro e além, até à Universidade Federal do Rio de Janeiro e ao aeroporto internacional. Quem aterra no Rio começa logo por ver a Maré à direita.

Com o horizonte aberto, Cadu explica em detalhe os limites de cada facção, incluindo o que não está à vista, o Complexo do Caju, onde hoje estão os Amigos dos Amigos. “Um bandido do Terceiro Comando foi solto, aí retornou com força, tomou toda essa parte que era ADA.” E eles foram para o Caju.

Não é como se fosse gente à parte da população. “São familiares, amigos. Tenho um primo em Nova Holanda [favela do Comando Vermelho], amigos de infância aqui [Terceiro Comando]. O raio de acção de uma pessoa da favela sempre vai ter uma ligação directa ou indirecta, ou você faz um trabalho informal, entrega uma quentinha [comida].” Descemos agora por becos íngremes e escadinhas, mas Cadu não perde a articulação, cabeça em movimento. “Traficante está traficante, não é traficante. É um universo complexo a que você pode chegar por muitas razões, porque já tem ligação familiar, ou porque tem problemas de socialização e vai ser exaltado, muita coisa. Mas continua a ser um indivíduo com as suas peculiaridades.”

Muitos morrem jovens, há quem saia. “Muita gente sai, muita gente entra. Na Maré é fácil ser bandido porque é muito grande. Agora eles estão evitando fazer guerra porque não querem ter UPP. A polícia não é boba, sabe que eles são fortes. A Maré está para ser a bola da vez faz muito tempo, mas outras coisas chamaram a atenção [noutras favelas]. Temos uma polícia imediatista, reaccionária.” Reage ao que acontece. “Agora acho que de repente já não vai ter mais UPP na Maré. Na Jornada Mundial de Juventude [durante a visita do Papa], a polícia ficou em torno da Maré e correu tudo bem. De repente acham que dá para fazer o mesmo na Copa.”

As facções mantêm-se quietas. “Nos últimos anos só vejo tiroteio em incursão policial. O último grande tumulto foi durante as manifestações de Junho, quando o Bope, a tropa de elite, veio atrás de um grupo que metia viciados em crack, entrou pela favela, facções responderam, um homem do Bope foi morto e o Bope montou uma operação de retaliação em que matou dez pessoas. “Bandidos e moradores. Eles entraram a torto e a direito, invasão de casa, pé na porta. E no outro dia iam retomar. Aí se mobilizou todo o mundo.” As redes de cidadania construídas na Maré, mais Amnistia Internacional, milhares de pessoas numa manifestação. Então o caso começou a ser investigado, polícias estão a ser acusados.

Cheira a almoço ao lume, estamos a descer para a Vila Pinheiro, a zona da Maré onde Cadu mora, nuns predinhos brancos. A vista abre mais: Pão de Açúcar e os morros ondulando até ao Cristo. Continuamos a pique, desembocando mesmo em cima da Linha Amarela, uma das vias rápidas que são a paisagem da Maré. À nossa frente estão as barreiras de acrílico que supostamente protegem do ruído, mas que Cadu acha que servem para os automobilistas não verem a favela.

É por baixo do viaduto da Linha Amarela, entre os pilares da própria auto-estrada, que se reúnem as “crews” do skate, uma febre que já leva 15 anos, que Cadu se lembre, mas sempre mais forte. Então, aqui estamos entre graffiti, nos subterrâneos do que os carros cariocas pisam todos os dias, e Cadu fala daquele edifício em Lisboa, “lindo”, onde esteve em Novembro, numa mostra de cinema brasileiro, como era o nome, como era. Era o CCB. E aquele bar como era? Pavilhão Chinês. E nós a passar por dois caras de “radinho” debaixo do viaduto, nos fundos do Rio de Janeiro. Caras de “radinho”, ou seja, walkie-talkie, comunicando com alguém noutro ponto, quer dizer uma coisa: tráfico. “O que é que são essas fotos?”, pergunta um deles. Cadu diz que são da escola de skate. A repórter fotografa o “half” de betão todo grafitado, que ao fim da tarde se enche. O campo de jogos que uma galera do forró também usa.

Seguimos pelas casinhas de tijolo da Baixa do Sapateiro, uma espécie de bairro social com telhados de telha mesmo, o que leva Cadu a comentar: “Primeira coisa que morador de favela pensa é em laje [terraço plano no topo da casa], onde solta pipa [papagaio], faz churrasco, faz festa. Aqui botaram telha [aponta]. O que é que a galera fez? Construiu a laje em cima.” Isto, a propósito de os moradores de favela muitas vezes não serem consultados. Há programas que, sim, consultam, mas estão mais focados nas favelas com UPP. “Agora o Rio se divide em favela com UPP e sem UPP.”

Cavalos num campo ao lado. “Tem curral, porcos, minha avó criava porco.” Veio do interior de Minas para a favela do Pinto, de onde foi desalojada para aqui. Já vai na terceira geração na Maré a família de Cadu. “Não me imagino a sair, por opção. A Globo veio me perguntar o que penso das crianças da Maré. Respondi: 'Quero que virem adultos na Maré.'”

Depois de Cannes rodou: Cuba, Nova Iorque, Espanha, Alemanha, Argentina. “Em Dezembro estive um mês e meio em Bérgamo, Milão, Rovereto, Roma, uma mostra de cinema brasileiro. Peguei um frio legal.” Nem por isso mudou de ideia quanto a onde morar, por agora. E namora uma escritora da Maré.

Redes de pescadores, dos que ainda sobram na poluída baía. “Tem alguns que migraram, em vez de peixe pescam garrafa pet.” De plástico, para vender. Mais adiante, a Lona Cultural Herbert Vianna, homenagem ao músico da banda Paralamas do Sucesso que ficou paralítico num acidente. As lonas culturais foram criadas a seguir à Eco-92, pôr tendas com actividades nas periferias. Por aqui chegamos a uma longa rua que separa duas facções, Terceiro Comando do lado esquerdo, Comando Vermelho do lado direito. Na esquina da Rua Tatajuba, o cenário é de combate. “Olha os buracos lá...” As esquinas estão furadas de balas, herança do combate entre as facções. E, lá no fundo, antes de desembocar novamente na Avenida Brasil, está a cracolândia: viciados que vieram fugidos de outras favelas e se amontoam nas calçadas, semiacampados.

Cadu mete por uma rua deserta, com asfalto queimado e uma carcaça de carro. “É onde eles desmancham os carros.” Eles são os traficantes, os carros são roubados, quando passa um tempo, tiram as peças valiosas, queimam a carcaça.

Atravessamos a avenida pela Passarela 7. Cadu conta que o seu próximo filme é sobre funk. Descarta o clichê do machismo homofóbico. “A Maré tem duas paradas gay, e os bandidos vão atrás, levantando a arma.” Hoje já não vai tanto, mas “aos 17 era rato de baile funk”. Um dos grandes bailes funk do Rio de Janeiro, dos últimos que sobram, porque nas favelas com UPP está difícil, é o do Parque União, aqui na Maré, sexta à noite, com o tráfico a organizar. Um mundo paralelo mesmo, que Ipanema não conhece, semanal e lotado, milhares de pessoas vindas de muitas favelas que agora têm UPP.

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