Na Rocinha, “a polícia perdeu o crédito” e “o tráfico está dando cartas de novo”

A morte de Amarildo, às mãos da polícia, fez com que os traficantes voltassem a ter poder na Rocinha, favela emblemática do Rio de Janeiro.

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Na Rocinha, a polícia já perdeu todo o crédito que tinha conquistado Reuters

Segunda-feira de Carnaval, 3 de Março. Martins espera a repórter junto à passarela da Rocinha. É um reencontro: quando a polícia tomou a favela, em Novembro de 2011, encontrámo-nos aqui de véspera. A casa de Martins foi a base do PÚBLICO nessa longa noite, entre idas e vindas, à espera dos tanques. Operação tipo filme de guerra, a maior anunciada no Rio de Janeiro.

Quase dois anos e meio depois, não é a paz, atalha Martins — José Martins de Oliveira, 67 anos, vetusta barba —, reforçado daqui a nada por Roberto Lucena, uma geração mais novo, mas como ele fundador, há sete anos, do movimento Rocinha Sem Fronteiras. Uma vez por mês, Martins e Roberto reúnem moradores para discutir problemas básicos: saneamento, água, saúde, educação, acessos às casas. Nada a ver com a Associação de Moradores ligada ao tráfico que é frequente nas favelas.

A tomada da polícia foi para implantar aqui uma UPP (Unidade de Polícia Pacificadora). Iniciado em 2008, este projecto estadual visa conquistar territórios aos traficantes, fixando a polícia dentro das favelas. Não se trata de eliminar o tráfico de droga, mas sim o seu controlo armado. Na lógica do Governo, a presença da polícia simboliza a presença do Estado, que deverá depois prolongar-se na chamada UPP Social, para trazer serviços à população. Mas, a meio do caminho, a UPP Social deixou até de estar sob a asa do secretário de segurança, José Mariano Beltrame, rosto das UPP. E hoje quem fala de UPP Social são os moradores das favelas, para perguntar onde está ela, afinal.

Entretanto, o que mudou tudo na Rocinha, entre a tomada policial em 2011 e o Carnaval de 2014, foi o desaparecimento do ajudante de pedreiro Amarildo, nunca mais visto depois de a polícia da UPP o ter levado. Tornou-se o símbolo das manifestações no Brasil em Junho de 2013, do Recife a Porto Alegre: “Cadê o Amarildo?” Ao fim de semanas, o Ministério Público acusou polícias militares por tortura e morte. O major Edson Santos, ex-comandante da UPP, está preso. O processo decorre.

Isto mudou a relação dos moradores com a polícia e devolveu confiança aos traficantes, resume Martins, enquando caminhamos por entre o lixo acumulado durante a noite. Os garis (homens e mulheres do lixo) do Rio de Janeiro estão em greve, e por toda a cidade há lixo, mas aqui não se trata de greve, é assim desde que recomeçaram as festas com som alto, noite fora.

“Antes do Amarildo, a polícia tinha uma apovação de 70%”, lembra Martins. “Depois, perdeu todo o crédito. Então a bagunça se generalizou.” São 9h30 da manhã e o cheiro é acre, misto de urina e lixo. De resto, tudo parece igual a antes da polícia, o mesmo caos ao sol, ladeira subindo o morro, becos, passagens, vielas. Martins mora numa travessa sombria à direita, emaranhado de fios eléctricos contra o céu. Sentamo-nos ao som de berbequins e rádios numa sala onde o sol nunca chega.

“Com o desaparecimento do Amarildo, a opinião pública se coloca contra a polícia e agora o tráfico está dando cartas de novo. Tirando as ruas principais, eles é que estão dando as ordens. Essa festa de sábado e domingo, com xixi na rua, barulho a noite toda, não acontecia. E você encontra grupos de homens armados por aí, fumando baseados.”

Roberto junta-se a nós, t-shirt amarela com as palavras “Cadê Amarildo” pintadas à mão. “O Beltrame diz que a UPP tem a missão de devolver o território, mas é uma maquilhagem que se vem tornando cada vez mais evidente”, diz ele. “A polícia tem de estar, mas com saúde, educação, interagindo. Só segurança é uma maneira de o Governo de Sérgio Cabral prosperar a política dele.” Quando a polícia ocupou a Rocinha, não teve nem resistência, sublinha Roberto. “Entraram com uma aceitação quase total, porque o tráfico barbarizava, matava, torturava, determinava a lei do silêncio. A nossa cidadania estava muito impedida de ser exercida. Aí a polícia vem, diz: ‘Estamos devolvendo a democracia, vocês vão se ver livres do tráfico, aqui vai se tornar um bairro.’ Aí, a gente faz um esforço tremendo para dialogar com eles, apresenta propostas, ouve. Ou seja, a comunidade recebe a UPP. Aí entra o Amarildo, ajudante de pedreiro, negro, some. E isso não foi investigado na hora, grande erro da polícia. O major dizia que não sabia, a imprensa começou a divulgar.” Como reagiu a favela? ”Um dizia que ele estava vivo, outro que tinha sido morto, outro que tinha relação com o tráfico...”

Vários Amarildos
Martins toma a palavra: “Na verdade, ele era ligado ao tráfico...” Roberto acautela: “Eu não tenho tanta certeza. Tinha uma relação de favores, levava uma quentinha [embalagem de comida], mas não era soldado.” Martins concorda: “Soldado, não. Mas talvez fosse ele quem entregasse o pagamento [suborno do tráfico] à polícia. Sabia muito e por isso mataram ele. Mas nada justifica a morte. Podia ser o próprio Nem [ex-chefe do tráfico na Rocinha].” Mais: “Só tem Caso Amarildo porque tem UPP, se não, não era caso. A polícia matou vários Amarildos antes da UPP, só que ninguém sabia.” Então, mal por mal, antes ter UPP, que é mais cobrada.

A polícia não está habituada a essa cobrança, a essa prestação de contas, e a prova foi o tempo que demorou o caso, insiste Roberto. “60 ou 90 dias até ser denunciado de facto. E as câmaras da UPP estavam apagadas, os GPS estavam apagados.” A polícia eliminou rastos, conclui. “Durante esse tempo, a hegemonia da população era contrária ao Amarildo, porque as pessoas diziam que ele era ligado ao tráfico. Até hoje tem gente lamentando a saída do major, porque tem essa mentalidade de que a truculência é que combate o tráfico. Depois, quando começou a investigação do Amarildo, descobriu-se que mais de 20 pessoas tinham sido torturadas pela polícia aqui.”

O corpo de Amarildo nunca chegou a ser encontrado, mas a justiça deu-o como torturado e morto pela polícia (Tribunal de Justiça do Rio, há um mês). Aí é que foi o desgaste da população com a polícia. “Gente dizendo: vieram moralizar, e afinal torturam e matam”, diz Roberto. “O mesmo papel do tráfico, só que polícia é funcionário público.” E agora “a corrupção já está de rédea solta, você entra nos becos e vê um quartel, armas pesadas, fuzil”. O regresso do poder paralelo armado. “As bocas [de fumo, ponto de venda de droga] voltaram com todo o vigor, com filas para comprar.”

Roberto acha que, de qualquer forma, as UPP “têm prazo de validade, a Copa e as Olimpíadas”, que a polícia está segurando o projecto até lá. “E já está ruindo.” Martins acrescenta: “O interesse em que dê certo é de todo o mundo, mas a UPP Social só ficou no nome.”

O governo anuncia um teleférico para a Rocinha, mas não é o que a Rocinha precisa. “As pessoas não querem teleférico, querem saneamento”, diz Roberto. “Teleférico dá voto, saneamento não.” Martins: “Teleférico não serve para idosos, para cadeirantes [deficientes em cadeiras de rodas], não pode carregar bolsa de compra, é para turistas. O que nós defendemos é a canalização das valas e, onde for possível, um carro num trilho, como se fosse bondinho.”

Saímos pela favela, sol de queimar. Martins e Roberto querem mostrar algumas das valas por onde corre o esgoto. É ao longo dos caminhos, e nos cantos, água que vem das nascentes e que quando chega aqui em baixo é esgoto aberto. “Tem cachorro morto, gato morto, sofá, lixo, baratas, doenças...”, diz Roberto. Há cartazes contra a tuberculose por toda a parte. Nas encostas a pique da Rocinha há casas e becos húmidos onde não chega luz. Há, por exemplo, esta boca do inferno que é o esgoto onde dois caminhos se bifurcam, um buraco negro, jorrando lixo, cheiro de podre. “Olha lá o rato”, aponta Roberto. Um ratão mesmo, e mesmo por baixo do cartaz desbotado do prefeito Eduardo Paes, que absurdamente sorri, sob o lema: “Somos um Rio”. Roberto revolta-se: “Por que isso é assim há 60 anos? Por que somos tratados de forma diferente de quem está no asfalto?” E quando não chove falta água dias a fio. E quando chove esta boca transborda, desce pela ruela. “As doenças se espalham. Imagina respirar isso todo o dia.”

Subimos e descemos becos estreitíssimos, degraus íngremes. Rapazes tatuados, tronco nu, correntes douradas, mas não armas, não esta manhã, segunda-feira de Carnaval. “É demasiado cedo”, diz Martins.

Mudar a polícia
O antropólogo Luiz Eduardo Soares — que já foi secretário de segurança, e é o mais referenciado intelectual carioca na matéria — acompanhou a investigação do caso Amarildo, e descarta laços a traficantes. “Sei com a certeza que se pode ter que ele não estava ligado ao tráfico”, diz ao PÚBLICO. “O que acontece é que pessoas muito pobres são o boi de carga. Mandam você buscar pizza, ou um pacote. E você não é ligado mas faz o que é possível para sobreviver. Até porque você recusar um serviço ao pessoal que tem poder é até perigoso.” Numa atmosfera assim, “qualquer um pode ser acusado de em algum momento ter servido o tráfico”, diz. “Isso não caracteriza cumplicidade e a demonstração é a casa dele.” Foi filmada para um documentário, na altura da investigação. “Não existe possibilidade de alguém receber do tráfico e viver naquelas condições, um cômodo [divisão] para toda a família, com a vala passando perto, uma das piores residências que podemos encontrar na Rocinha.” Quem lucra com o tráfico não vive tão mal. “Claro que num lugar com 100 mil pessoas como a Rocinha qualquer notícia vira fofoca, tem interpretação.” Como a ideia de que poderia ser ele a entregar os subornos do tráfico à polícia. “Ele até pode ter feito isso alguma vez, mas ninguém o mataria por isso, porque a polícia nunca teve pudor em esconder isso. Não havia um sigilo que se justificasse.” A questão é outra. “Infelizmente, a polícia não precisa de grandes motivos para matar. Suspeitaram que ele saberia de algo e torturaram ele. Tanto que depois surgiram relatos de outras pessoas torturados.”

Todo este quadro “é revelador”, resume Luiz Eduardo Soares. “A UPP tem boas motivações. E poderia ser bem sucedida se a polícia militar fosse submetida a um processo muito profundo de reforma, e se a UPP não fosse dissociada de intervenções sociais. Isso não aconteceu, de facto. Se temos os mesmos polícias, vamos ter casos assim.”

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