Spike Lee está farto dos hipsters que chegam a Brooklyn com "a síndrome de Colombo"

Realizador descarrega a fúria contra as mudanças demográficas dos últimos anos no bairro em que cresceu e acabou por reacender o debate sobre a gentrificação. E também sobre o racismo.

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Habitações compradas há cinco décadas por 40 mil dólares estão a ser vendidas por mais de dois milhões de dólares Spencer Platt/Getty Images/AFP

Quando o músico norte-americano Bill Lee se atira às cordas do baixo, no seu apartamento no bairro de Fort Greene, em Brooklyn, é quase certo que a vizinha da frente faz tocar o telefone na esquadra da polícia mais próxima. Lee já embalou milhões de pessoas em todo o mundo nas últimas cinco décadas, dando corpo a êxitos de Bob Dylan, Aretha Franklin ou John Lee Hooker, mas muitos dos novos habitantes deste outrora postal de droga e criminalidade de Nova Iorque não têm paciência para ouvir música em primeira mão. Como se ela estivesse a ser tocada no seu quarto. Às duas da manhã.

A história poderia passar despercebida se Bill Lee não fosse pai de Spike Lee, o realizador que passou grande parte da carreira a discutir tensões raciais nos seus filmes e uma das vozes mais críticas da gentrificação de Brooklyn – ou, nas palavras do próprio Spike Lee, o “influxo de nova-iorquinos brancos”, que têm chegado a Brooklyn aos milhares na última década, “como se fossem o cabrão do Colombo a matar nativos americanos”.

As palavras duras de Spike Lee, cuspidas na noite de terça-feira num auditório do centenário Pratt Institute, incendiaram as redes sociais, foram dissecadas em jornais e programas de televisão e reactivaram o velho debate sobre aquilo a que muitos gostam de chamar “as dinâmicas de desvalorização e revalorização das cidades” e outros “a descaracterização das comunidades locais”.

Quando o debate é sobre Brooklyn, Spike Lee insere-se claramente no segundo grupo. Confrontado por um membro da audiência com os possíveis benefícios do interesse de famílias mais ricas no bairro onde ambos cresceram (como a subida em flecha do valor das casas, compradas por poucas dezenas de milhares de dólares há 40 ou 50 anos e vendidas agora a mais de dois milhões de dólares), o realizador arrancou para uma emotiva maratona oratória, salpicada com algum humor e muitos palavrões.

“Eu cresci aqui em Fort Greene. Cresci em Nova Iorque. Isto mudou. Porque é que é preciso um influxo de nova-iorquinos brancos no sul do Bronx, no Harlem, em Bed Stuy, em Crown Heights, para que as condições melhorem? O lixo não era recolhido todos os filhos da puta dos dias quando eu vivia no n.º 165 de Washington Park. (…) A polícia não entrava aqui. Quando vês mães brancas a empurrar carrinhos de bebés na Rua 125, isso devia dizer-te alguma coisa.”

D. K. Smith, o homem nascido e criado em Brooklyn que ateara fogo ao discurso de Spike Lee com uma pergunta que parecia inocente, não teve oportunidade de contra-argumentar. “Mas há mais. Deixa-me dar cabo de ti mais um bocado”, disse o realizador após a primeira tentativa falhada de Smith para voltar à conversa.

“Depois vem a filha da puta da síndrome de Cristóvão Colombo. Não é possível descobrir isto! Nós já estávamos cá! Não podes vir para cá e agir como se isto fosse tudo teu. Havia aqui irmãos a tocar tambores africanos no Mount Morris Park há 40 anos e agora não podem fazê-lo porque os novos habitantes acham que eles fazem muito barulho!”

As críticas de Spike Lee foram recebidas das mais variadas formas, desde os aplausos às acusações de racismo. Em sua defesa, numa entrevista à CNN, o realizador disse que não é o ódio que o move. “Não odeio ninguém, acho que toda a gente tem o direito de viver onde quiser. Mas quando alguém muda para um bairro tem de ter algum respeito pela sua história, pela sua cultura. (…) Sejam humildes. Não cheguem aqui a dizer ‘agora estamos cá e as coisas têm de ser assim’. Isso é uma loucura.”

Não é uma questão de discriminação, e muito menos de racismo, defende-se Spike Lee. “A minha preocupação é que haja habitação a um custo aceitável para toda a gente, para que Nova Iorque possa continuar a ser a grande cidade que é. Se tivermos de ser milionários para vivermos em Nova Iorque, Nova Iorque vai deixar de ser a cidade que é.”

Spike Lee diz também que compreende os proprietários de apartamentos em Brooklyn que abrem as portas aos cheques gordos de particulares e agência imobiliárias, fazem as malas e arrancam para zonas mais tranquilas. E não podia ser de outra forma, já que o realizador é também um dos actores principais da gentrificação da área onde se estabeleceram vários nomes da cultura popular norte-americana, como o actor Chris Rock, o guitarrista Vernon Reid, o saxofonista Branford Marsalis ou a cantora Erykah Badu.

“Uma teoria da gentrificação postula que os artistas são uma parte fundamental das suas fases iniciais, porque tornam uma área mais desejável para jovens, e têm tempo e disposição para melhorar o aspecto de casas velhas”, escreve o jornalista norte-americano Gene Demby no site Salon. “Assim que esses bairros se transformam em sítios da moda, o dinheiro vai logo atrás. Não é difícil ver o Spike implicado nesse processo, mesmo que indirectamente.”

Em 1990, antes de sair de Brooklyn, Spike Lee comprou uma pitoresca brownstone de cinco andares por 650 mil dólares, segundo o The Wall Street Journal. Uma década depois, a habitação foi vendida a um banqueiro e a uma advogada por um milhão de dólares. Lee pegou nas malas e mudou-se para o Upper East Side, em Manhattan, onde comprou uma mansão por 16 milhões de dólares. A mesma que pôs agora à venda pelo dobro do preço. Entretanto, a brownstone que tinha ficado para trás em Brooklyn foi vendida por quase três milhões de dólares – quatro vezes mais do que Spike Lee pagara por ela em 1990.

Não há nenhuma fórmula mágica para agradar a todos. Entre a inevitabilidade das primeiras palavras da canção “It’s All Over Now, Baby Blue”, onde Bob Dylan canta “You must leave now, take what you need” (Tens de sair agora, leva tudo o que precisares) acompanhado pelo baixo de Bill Lee, e a ideia de que uma comunidade só pode manter-se fiel às suas raízes se não abrir as portas, fica a resposta da madrasta de Spike Lee, ao The New York Times, em defesa do direito do marido a continuar a tocar na casa em que vive há quase 50 anos: “As pessoas não se mudam apenas para uma casa; mudam-se para uma comunidade.”

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