Rua escondida, com histórias fora de porta

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Sempre gostei do seu nome: Rua de Trás. Dá-lhe assim um ar de abandono, como se ninguém se tivesse preocupado suficientemente com ela para a baptizar de forma mais interessante. O nome assenta-lhe bem, ela fica ali nas traseiras da Rua dos Clérigos, serpenteando, inóspita, entre o Largo dos Lóios e o Campo dos Mártires da Praia. Uma rua escondida de quem não gosta de se embrenhar pelo desconhecido de uma cidade e se fica pelas ruas principais. E sem algo de demasiado distintivo que faça dela uma estrela, mas, ainda assim, dona de parte da história da cidade.

Diz-se que o nome lhe ficou colado por ela se situar precisamente atrás da muralha da cidade, que corria pelo que é hoje a Rua dos Clérigos. É bem possível que assim seja. Às vezes, o nosso país consegue ser bastante prático e não me esqueço que, no tempo em que ainda enviava cartas e postais, uma das moradas que mais prazer me dava escrever era a de uma amiga serrana, que morava na Casa Junto à Capela. Era isso que colocava no envelope, Casa Junto à Capela, o nome da localidade e mais nada. E não houve correspondência que se tenha perdido uma única vez.

A Rua de Trás nasce no Largo dos Lóios e cresce por ali acima, mais larga no troço que vai até ao cruzamento com a Rua do Arquitecto Nicolau Nasoni, mais estreita, sem lugar para estacionamento e abruptamente inclinada quando galgamos o pedaço que falta até desembocar junto à antiga Cadeia da Relação, no Campo dos Mártires da Pátria. Lá em baixo, quando avaliamos o quanto teremos de trepar, vemos o topo da Torre da Clérigos a insinuar-se, sobre o casario. A meio, quando pressentimos que a torre há-de estar mesmo ali ao lado, escondida apenas pelas casas de fachadas cobertas de azulejo ou pintadas em cores pouco exuberantes, com as suas varandas de ferro, tão típicas da cidade, já não há sinal dela.

Ao longo da subida, ela não difere muito de outras ruas da cidade. Há edifícios vazios e a desfazer-se, marcados com graffitis bonitos e coloridos. Já lá chegaram os alojamentos turísticos e casas de petiscos. Não falta roupa a secar nas varandas, nem cafés velhos e descaracterizados. Mas eu percorro-a em busca das histórias que me levaram ali de outras vezes.

Começo a subi-la e tento adivinhar qual era a porta em que se sentava um velho alfaiate que uma vez entrevistei. Todos os dias, acomodado num banco de madeira, empunhava as grandes tesouras de ferro e alinhavava bainhas, perante o olhar de quem passava. Já decorreu muito tempo, se calhar o velho alfaiate morreu e não há agora, quando lá passo, uma porta aberta a deixar ver tecidos, agulhas e dedais, em torno de uma máquina de costura antiga.

Um pouco mais à frente, uma pintura do artista urbano Hazul marca os muros de um espaço vago, coberto de silvas e lixo, que em 2011 recebeu um projecto integrado no programa Manobras, que animou o centro histórico da cidade com várias actividades. Uma jovem arquitecta italiana limpou o terreno e instalou ali um jardim suspenso, efémero, na tentativa de dar uma nova vida a uma das ruínas da cidade. O projecto acabou e o abandono voltou a tomar posse do pátio, engolindo-o.

Quando já estou quase no cimo da rua, é impossível não regressar a 9 de Janeiro de 2009. Foi, se não me engano, o último dia em que nevou no Porto. Uns farrapos brancos, pouco convictos, que se desfaziam em água ao tocar o chão. Lembro-me de eles caírem sobre mim enquanto permanecia ali, na Rua de Trás, de pescoço esticado e rodeada por bombeiros e vários colegas.

Num dos prédios de pedra da rua deflagrara um incêndio. Quando lá cheguei, já se sabia que havia mortos. Um homem com mais de 80 anos e uma mulher mais a sua filha de 11 anos. A tragédia pesava, mas havia a esperança de que a irmã da criança morta, com 15 anos, se tivesse salvo, que não estivesse em casa. Às 10h33, encontraram-na. Afinal, dormira em casa. Afinal, não se salvara. Estava a nevar e quatro pessoas morreram no meio das chamas. A Rua de Trás não é propriamente uma artéria alegre, que nos faça sorrir quando por lá passamos, mas ficou, de certeza, um pouco mais triste depois desse dia.     

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