El Chapo, um traficante maior do que a sua altura e mais pequeno do que o mito

A captura do "mais icónico traficante de droga dos tempos modernos" traz à superfície uma história de extrema violência, mas também a de um mito construído em narcocorridos e lutas políticas no México.

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Joaquín Guzmán foi capturado na madrugada de sábado, 13 anos depois de ter fugido da prisão Alfredo Estrella/AFP

Há mais de 20 anos que Joaquín Guzmán deixara de ser apenas um homem. Era também um mito na cultura popular mexicana e um fantasma para as autoridades do país, ora porque se lhes escapava por entre os dedos quando estava prestes a ser capturado, ora porque lhes tapava os olhos com os milhões ganhos com o sangue das vítimas do narcotráfico para fugir da prisão.

Ao fim de 13 anos em fuga, El Chapo Guzmán, líder do poderoso cartel de Sinaloa e um dos responsáveis pelo banho de sangue em que se transformou a luta pelo controlo de Ciudad Juárez em meados da década passada, foi capturado no quarto de um condomínio de luxo na madrugada de sábado, sem um único tiro disparado.

Mais do que uma vitória sobre o narcotráfico, foi uma vitória do Presidente mexicano, Enrique Peña Nieto, que se apressou a anunciar a captura através do Twitter: “Quero salientar o trabalho das instituições de segurança do Estado mexicano na detenção de Joaquín Guzmán Loera, em Mazatlán.” Fora dos agradecimentos ficaram os agentes da Drug Enforcement Agency norte-americana, que também participaram na operação.

As notícias sobre a captura de El Chapo repetem a mesma ideia. Chegou ao fim a era de um dos mais poderosos barões da droga da História, o temível e impiedoso líder do narcotráfico que dominava a estrada da morte entre o cultivo de ópio no Afeganistão e as ruas das grandes cidades dos EUA, passando pelas plantações de coca da Colômbia e pelos laboratórios de metanfetamina nas montanhas do centro e da costa Oeste do México. Acabou o reinado do fugitivo mais procurado em todo o mundo após a morte de Osama bin Laden e o segundo homem a quem a cidade norte-americana de Chicago atribuiu o rótulo de “inimigo público n.º 1”, uma distinção infame que apenas tinha recaído sobre o gangster Al Capone, há mais de 80 anos.

Mas a História também tem mostrado que a captura ou a morte de um importante barão da droga, no México ou na Colômbia, acaba por funcionar como um rastilho para uma explosão de violência entre cartéis rivais, e é desse receio que fala o jornalista mexicano Raymundo Riva Palacio no jornal espanhol El País: “O golpe que representa a detenção de Guzmán e a perseguição a outros chefes do cartel do Pacífico são boas notícias para Los Zetas e muito más para o México. O Los Zetas é o cartel mais violento e sanguinário, que tinha nos seus adversários de Sinaloa um contrapeso criminoso. Esse equilíbrio natural chegou ao fim.”

Fuga da prisão pela "porta grande"

A determinação do Presidente Enrique Peña Nieto em provar que os seus antecessores Vicente Fox e Felipe Calderón (ambos do Partido Acción Nacional, do centro-direita) falharam na luta contra o narcotráfico porque vaguearam entre a falta de coordenação e o alegado conluio com alguns cartéis, indica que El Chapo Guzmán poderá ter agora mais dificuldades para escapar às grades da prisão do que quando foi capturado pela primeira vez, em Junho de 1993, na Guatemala.

Em 2001, cansado da vida tranquila que levava no interior da prisão de alta segurança Puente Grande, no estado de Jalisco, El Chapo (ou "o baixinho", devido à sua baixa estatura) e os seus tentáculos no exterior começaram a subornar guardas prisionais e agentes da polícia local. A decisão do Supremo Tribunal do México de facilitar os processos de extradição para os Estados Unidos apressou a fuga, mas a forma como El Chapo escapou foi tão pouco atribulada que a prisão de Puente Grande ficou conhecida desde então como Puerta Grande: um guarda abriu a porta da cela, Guzmán escondeu-se num carro de transporte de roupa suja e foi passando por todos os postos de controlo até sair pela porta principal. Uma pequena viagem na bagageira de um automóvel e os olhos fechados da polícia local durante 24 horas puseram fim aos seus dias de reclusão.

Dois anos depois da fuga, Guzmán viu cair-lhe nos braços o poder máximo do narcotráfico mexicano, com a detenção do seu rival Osiel Cárdenas, líder do cartel do Golfo. O passo seguinte foi a luta pelo controlo de Ciudad Juárez, o paraíso dos cartéis para a entrada de droga nos Estados Unidos que se transformou num inferno para os seus habitantes. Em Setembro de 2004, El Chapo encarregou o seu braço armado de então, a organização Los Negros, de executar Rodolfo Carrillo Fuentes, o homem que controlava Ciudad Juárez, pondo em marcha uma guerra entre cartéis rivais que continua até hoje e que já deixou pelo seu sangrento caminho entre 60.000 e 100.000 mortos – é impossível calcular um número certo devido aos milhares que desapareceram sem deixar rasto.

O homem e o mito

Foi nessa época que o homem começou a confundir-se com o mito. Protagonista de narcocorridos que lhe gabavam os feitos (“Dos pés à cabeça é baixinho de estatura/Da cabeça até ao céu eu estimo a sua altura/Porque é grande entre os grandes/E ninguém pode duvidar disso”, cantavam Los Canelos de Durango) e de aparições em restaurantes que nunca foram provadas, onde entraria com a sua guarda pessoal, mandaria fechar as portas e convidaria os presentes a continuarem as suas refeições sem se alarmarem – depois de lhes confiscar os telemóveis e antes de lhes pagar as contas –, El Chapo Guzmán conquistava um lugar de destaque no folclore mexicano.

Hoje em dia, aos 56 ou aos 60 anos de idade – as duas datas de nascimento mais referidas são Dezembro de 1954 e Abril de 1957 –, o homem descrito pelo Departamento do Tesouro norte-americano como o “traficante de droga mais poderoso do mundo”, com uma fortuna pessoal avaliada em 1000 milhões de dólares, é talvez mais pequeno do que o tamanho do mito, mas não é isso que importa, escreve o jornalista mexicano Raymundo Riva Palacio no portal de notícias Eje Central: “Não havia informações certas sobre o seu estado anímico, nem sobre a sua verdadeira capacidade operacional e de liderança no interior do cartel do Pacífico. Mas para a opinião pública, isso não importava, como se podia comprovar de cada vez que havia rumores sobre a sua detenção. De cada vez isso acontecia, começava um frenesim de especulação nas redes sociais.”

Ioan Grillo, outro jornalista mexicano e autor do livro “El Narco: Inside Mexico's Criminal Insurgency” (2012), descreve El Chapo como “o mais icónico traficante de droga dos tempos modernos”, mas concorda com a ideia de que o homem nem sempre estava à altura do mito: “Por vezes, o mito passa para primeiro plano, e na verdade ele não correspondia inteiramente à imagem de todo-poderoso. Por exemplo, nunca conseguiu assumir o controlo do estado de Tamaulipas, no nordeste do México, e estava a travar várias batalhas com os seus rivais em todo o país”. Apesar disso, diz Ioan Grillo à BBC, El Chapo deixou uma marca devido “à sua capacidade de subir na hierarquia através do recurso selectivo à extrema violência e ao facto de sobreviver à extrema violência contra ele, enquanto criava esta enorme mitologia à sua volta. Isso fez dele uma figura de culto e agora é reconhecido em toda a América Latina”.

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