Segurança Social: É preciso reformar?

O Sistema de Segurança Social português, ainda que relativamente recente quando comparado com os sistemas das economias mais desenvolvidas do norte da Europa, evoluiu de forma significativa nas últimas quatro décadas.

Contudo, este crescimento exponencial apresenta duas características importantes que importa salientar. Por um lado, a sua extemporaneidade, na medida em que foi constituído quando nos países do norte da Europa já se questionava este tipo de modelo. Por outro lado, a sua ineficácia no combate às desigualdades, atendendo ao acréscimo de recursos financeiros despendidos. Com efeito, apesar do aumento do peso das despesas da Segurança Social com prestações sociais e apoio a famílias e instituições ter subido de 8,3% do PIB em 2001 para 13,1% em 2012, o certo é que Portugal era em 2010 o sexto país da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Económico (OCDE) com a distribuição mais desigual do rendimento e o mais desigual da Europa.

Não procurando identificar aqui os motivos que conduziram a que o sistema se desenvolvesse fora de tempo, procura-se, essencialmente, reflectir sobre as razões que estarão na origem da falta de eficácia do mesmo, ou seja, sobre os fundamentos deste estranho e perverso desequilíbrio: tão grandes gastos para resultados tão insuficientes.

Em primeiro lugar, o sistema apresenta-se extremamente complexo, em resultado i) das sucessivas alterações legislativas; ii) da dificuldade na sua operacionalização; iii) bem como da dificuldade em assegurar a indispensável articulação entre os organismos responsáveis pela gestão.

Para ilustrar esta complexidade considere-se, por exemplo, o facto de os prazos de atribuição do subsídio de desemprego variarem consoante o beneficiário tenha garantido (ou não), em 31 de Março de 2012, determinado período de concessão do subsídio, em função da idade e do período de descontos realizados. De igual forma, a articulação entre as diversas componentes do sistema no âmbito da eventualidade desemprego, apresenta elevada complexidade. Por exemplo, quem perde o direito ao subsídio de desemprego poderá aceder ao rendimento social de inserção, em determinadas condições, ao subsídio social de desemprego noutras ou a uma pensão de velhice, noutras ainda.

Uma segunda limitação do sistema prende-se com a sua falta de equidade quando para situações iguais atribui prestações distintas. Exemplo disto manifesta-se na atribuição do subsídio social de desemprego quando se comparam dois casais (A e B) com quatro filhos cada e um adulto desempregado. No casal A o adulto empregado ganha 900 euros, enquanto no casal B o adulto empregado ganha 919 euros (mais 19 euros). O casal A, atendendo à sua composição e rendimento, tem direito a subsídio social de desemprego no montante de 419,21 euros, enquanto o casal B, por possuir um rendimento superior em 19 euros ao casal A, não terá direito a nada.

De igual forma, a recente decisão de corte na pensão de sobrevivência vem gerar mais iniquidades, na medida em que um beneficiário que receba, por exemplo, uma pensão de sobrevivência de 750 euros e uma pensão de velhice de 1500 euros verá a sua pensão de sobrevivência cortada, enquanto um beneficiário que não receba uma pensão de velhice mas um vencimento (ou rendimento predial) de igual montante verá o valor da sua pensão de sobrevivência preservado.

O sistema é também gerador de iniquidades, e até com recortes de imoralidade, quando, directa ou indirectamente, atribui a cidadãos com rendimentos elevados “prestações sociais destinadas a prevenir e erradicar situações de pobreza e de exclusão”. Para tal contribuem os problemas associados à denominada condição de recursos e ao facto i) de não existir um único modelo de condição de recursos aplicável a todas as prestações (existem pelo menos três versões); ii) da aplicação da condição de recursos apresentar eficácia reduzida, conforme resulta dos estudos efectuados pelo Professor Carlos Farinha (2009), de acordo com o qual “mais de 25% dos beneficiários do complemento solidário para idosos não eram pobres antes de beneficiarem do programa”; e de grande parte da despesa do Sistema de Protecção Social de Cidadania (financiada na quase totalidade pelo Orçamento de Estado), não estar sujeita a condição de recurso (em 2012, num total de despesa estimado de 6850 milhões de euros no Sistema de Protecção Social de Cidadania, cerca de 4350 milhões de euros, ou seja, 63,5% da despesa, não foi sujeita a condição de recursos, o que significa que não ficou garantido que apenas “aqueles que mais necessitam” são os beneficiários das prestações).

Relativamente à condição de recursos, importa recordar que a mesma não é aplicada, por exemplo, aos complementos sociais atribuídos aos pensionistas de pensões mínimas (sublinhando que nem todos os pensionistas de pensões mínimas são pobres).

Uma terceira limitação do sistema prende-se com o seu difícil controlo. Com efeito, resultado de i) complexidade legal do sistema; ii) dificuldade no cruzamento de dados entre departamentos da administração pública; e iii) morosidade no sistema de justiça, a atribuição de prestações sociais apresenta-se difícil de controlar, conduzindo a volumes significativos de pagamentos indevidos e consequente acumular de dívidas de beneficiários.

Por fim, importa referir uma quarta limitação do sistema, a que se prende com a sua sustentabilidade. Para compreender esta problemática, teremos de ter em consideração as especificidades de financiamento de cada um dos seus dois principais sistemas: Sistema de Protecção Social de Cidadania e Sistema Previdencial.

No que respeita ao Sistema de Protecção Social de Cidadania, a sua sustentabilidade dependerá da capacidade da sociedade, através dos seus impostos, financiar de forma solidária esta despesa. Essa capacidade estará obviamente dependente do crescimento económico, uma vez que não é expectável aumentar a actual, e já excessiva, carga fiscal.

Relativamente ao Sistema Previdencial, e tendo em consideração que se trata de um sistema de repartição financiado, fundamentalmente, por contribuições das empresas e quotizações dos trabalhadores, a análise da sustentabilidade poderá ser feita de acordo com duas perspectivas. Por um lado, e numa óptica de “repartição”, constata-se a existência de um desequilíbrio global do sistema desde 2009, traduzido num saldo negativo médio anual de 891,1 milhões de euros no quadriénio terminado em 2012 (no caso da componente de pensões de velhice, a que mais preocupa a generalidade das pessoas, se nada for feito o desequilíbrio acumulado nesta componente poderá representar em 2030 cerca de 30% do PIB). Por outro lado, numa perspectiva “actuarial”, e para um conjunto de casos reais de carreiras contributivas, conclui-se que as pensões representativas dessas carreiras corresponderiam a cerca de 50% a 60% do valor actualmente pago. 

Em conclusão, poder-se-á afirmar que, resultado da excessiva complexidade; falta de equidade; dificuldade de controlo; e insustentabilidade, o Sistema de Segurança Social revela-se ineficiente, carecendo, por isso, de uma profunda reforma. Essa reforma terá de ser, simultaneamente, estrutural, na medida em que implica alterações no quadro legal e uma reengenharia completa da estrutura que gere o sistema, e global, uma vez que não pode incidir apenas nas pensões de velhice, devendo abranger todas as prestações e transferências do sistema.   

Esperemos que haja coragem para a fazer rapidamente, sob pena de, se nada for feito, daqui a dez anos não termos nada para discutir sobre esta matéria.

Miguel Coelho é professor da Universidade Lusíada e antigo vice-presidente do Instituto de Segurança Social

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