Ucrânia puxada e empurrada para o abismo

Há um remake da Guerra Fria a acontecer na Europa, com a disputa pelo país que faz fronteira entre a área de influência da Rússia e a do Ocidente.

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Um manifestante lança um cocktail Molotov enquanto outro abençoa o lançamento PIERO QUARANTA/AFP

É como se uma grande fractura entre o Leste o Ocidente se estivesse a rasgar na Europa, abrindo um abismo profundo que parte a Ucrânia em dois. No meio, está a capital, Kiev, onde a guerra de delimitação da fronteira entre o espaço de influência da Rússia e o da NATO se está a travar em verdadeiras batalhas campais entre tropas governamentais de um regime apoiado por Moscovo e milícias armadas da oposição inspiradas por heróis nazis.

As manifestações começaram, em Novembro, pelo desejo de mais democracia e de um futuro europeu – em protestos contra a decisão, em cima da hora, do Presidente Viktor Ianukovitch de não assinar a parceria comercial com a União Europeia, para aprofundar os laços com a Rússia. Foi uma vitória para o Presidente Vladimir Putin, que roubou a noiva ucraniana praticamente no altar, sem que a UE soubesse como reagir. Foi também uma quebra da trégua pós-Guerra Fria.

“Geograficamente, a Ucrânia fica entre os dois lados. Até agora, a sombra da velha rivalidade da Guerra Fria tem estado afastada. Mas, à medida que a crise se agrava, a Rússia e o Ocidente podem deixar de ser capazes de cooperar sobre a Ucrânia”, escreveu Bridget Kendall, especialista em diplomacia da BBC. Além disso, embora tudo pareça um remake da Guerra Fria, 2014 não é 1989 e o Muro de Berlim não acabou de cair. A Europa não está tomada de uma enorme onda de solidariedade para com o Leste, recorda Andrew Wilson, autor do livro The Ukrainian: Unexpected Nation. Antes pelo contrário, há sentimentos muito hostis na UE sobre a imigração.

Os primeiros protestos tinham a União Europeia como horizonte. Os manifestantes traziam as bandeiras azuis com as estrelas douradas da UE, falavam na necessidade de acabar com a corrupção, de construir um país mais normal, não queriam pertencer à esfera russa. Para Putin, a Ucrânia é fundamental para construir a sua união aduaneira, um bloco comercial formado por países que pertenceram à União Soviética e ainda hoje não primam pela democracia – como a Bielorrússia ou o Cazaquistão – ou que forem coagidos a juntar-se.

Por isso, a ideia que passa é que a entrada da Ucrânia neste bloco, com a sua economia em falência, está a ser comprada pela Rússia. Se Ianukovich pensar em não cumprir, o crédito de 15 mil milhões de dólares que lhe foi concedido por Moscovo poderá ser retirado. A título de exemplo, a segunda tranche, de 2000 milhões, foi atrasada até sexta-feira “por motivos técnicos”.

A televisão estatal russa transmitiu ontem durante todo o dia imagens dos violentos protestos de terça-feira – um manifestante a atirar um cocktail Molotov, um polícia a contorcer-se de dores no chão, fumo a sair de barricadas a arder. Tudo isto acompanhado de avisos de tom apocalíptico sobre uma guerra civil ao virar da esquina e acusações de que potências estrangeiras estavam a interferir na Ucrânia, relata a Reuters.

Cenário Bósnia

Há quem fale na possibilidade de uma guerra civil trágica, num cenário bósnio – com o país a dividir-se ao longo de linhas etnolinguísticas: russófonos e partidários de Ianukovich no Leste, e falantes de ucraniano e apoiantes da oposição no Ocidente. Mas o mosaico não é assim tão simples, como explica o jornalista e produtor de televisão Peter Pomerantsev. “O que a Maidan tem de mais parecido com um líder é o campeão de boxe Vitali Klitschko, que fala mal ucraniano, mas que tem um russo muito mais puro do que o do Presidente Ianukovich”, escreveu ontem num blogue da London Review of Books. “O foco da revolução é Kiev, e, embora a região de Kiev seja definida como “falando sobretudo ucraniano”, na própria cidade, “estimando por baixo, 60% dos habitantes falam russo”.

O historiador britânico Timothy Garton Ash considera que a comparação com a Bósnia é exagerada, mas reconhece que há um potencial explosivo. “Esta já não é uma revolução de veludo, como foi a Revolução de Laranja de 2004 [na Ucrânia]”, escreveu no Guardian. “Graças sobretudo à estupidez da máquina de Ianukovich e à brutalidade das [forças especiais] Berkut, mas também porque havia outras forças de oposição neste país fracturado, o veludo está a arder.”

Se os protestos começaram pacíficos, endureceram em resposta à repressão policial. Surgiram milícias de extrema-direita, como o Pravi Sektor (Sector Direito), nacionalistas que se inspiram em Stepan Bandera, que apoiou os nazis contra a invasão do Exército Vermelho na II Guerra Mundial. Para eles, Ianukovich é um traidor, porque o vêem a ceder soberania a Moscovo. Agora, querem liderar os protestos. Já não aguentam os “cantos pacíficos e danças na Maidan”, a praça, afirmaram num manifesto.

Além disso, entre os três líderes da oposição que lideram os protestos está também Oleh Tiahnibok, que preside ao Svoboda, um partido de extrema-direita e anti-semita, que teve 10% nas últimas eleições. Não é de esperar que tenham um projecto democrático para a Ucrânia, mas se Ianukovich sair do poder é provável que faça parte do próximo governo.

 Legenda corrigida a 20 de Fevereiro, às 11h26

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