Falsa bonança

Na semana passada foi publicada no blogue “Vias de Facto” uma frase lapidar: “Responsabilizar a democracia direta pelos resultados do referendo suíço é tão demagógico quanto responsabilizar a democracia representativa pela ascensão da família Le Pen”. O seu autor, Zé Nuno Matos, resumiu em poucas palavras o que eu tentei dizer em bastantes mais na minha crónica da semana passada (“Absolutismos”, sobre como decisões erradas, no caso sobre a imigração e o euro, podem ser tomadas tanto em democracia direta na Suíça como pelo “colégio de sábios” do Tribunal Constitucional Alemão).

Pode haver aqui uma ironia, porque eu não sei se a frase se referia à minha crónica. Mas eu concordo com o comentário, acho que ele é complementar ao que escrevi, e para ilustração não há melhor do que algumas das reações ao próprio referendo suíço.

Em Bruxelas, em concertação com os governos europeus, os burocratas fazem os seus disparates habituais. Os primeiros instrumentos a serem afetados, em resposta ao referendo suíço, foram o programa Erasmus e os intercâmbios de cientistas. Seria difícil imaginar uma reação pior. A mensagem que ela comunica é que a União Europeia está disposta a retaliar sobre estudantes e cientistas, ao mesmo tempo que todas as trocas de serviços financeiros com a Suíça restam intocadas. Nem sequer se safa a posição “legalista” a que a Comissão Europeia se remeteu na semana passada, dizendo que pondo em causa um instrumento de cooperação com a União, a Suíça poria em causa todos os instrumentos, incluindo o acesso ao mercado único. Aí há interesses demasiado grandes para se bulir com eles; em troca, podemos sacrificar as pessoas comuns, sempre elas, as mesmas que foram o alvo do referendo suíço, só com passaportes diferentes.

O que se está a passar? Também não tenho uma resposta definitiva. Nem sequer tenho a pergunta certa. Só me parece que ela não está em saber se os cidadãos são melhores do que os burocratas, os juízes melhores do que os políticos, ou os jornalistas melhores do que eleitores.

O máximo com que posso contribuir é com uma mera impressão: estamos a viver uma falsa bonança. A pressão sobre o euro parece ter acalmado, os governantes suspiram de alívio em público, as notícias entraram numa rotina mais normal do que nos últimos anos. E no entanto, no plano de fundo, as más decisões sucedem-se. Todas elas se caracterizam por um egoísmo fundamental e uma recusa em admitir que nada mudou. Nem o poder da banca foi limitado, nem a moeda foi reformada, nem as instituições foram democratizadas, nem a resposta política traz consigo qualquer tipo de esperança. E entretanto, lá longe na Ucrânia e na Síria — aqui tão perto — a violência lavra já sem quartel.

Começámos o ano desejando que 2014 não fosse como 1914. E para já estão a ser muito parecidos. Nesta primeira metade do ano há no ar uma espécie de acalmia podre, e no solo uma animosidade recíproca. Há dias em que ninguém está isento dela — cidadãos, políticos, funcionários, jornalistas. Só espero que depois da falsa bonança não venha a verdadeira tempestade.

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