Praxes do Meco: a educação ou no reino da estupidez

Falta-nos um escol para que possamos ver o nosso quadro civilizacional em toda a sua extensão.

Em 1912, tal como Eça décadas antes, Fernando Pessoa escrevia sobre o caso mental português. Entre muitas características da nossa mentalidade e dos nossos comportamentos, Pessoa identificava como espécie de patologia a inescapável tendência para não haver em Portugal homens originais. Ausência de escol, eis o que minava, para Pessoa, a nossa realidade. Tal ausência de escol tinha a seguinte consequência: “A ausência de ideias gerais e, portanto, do espírito crítico e filosófico que provém de as ter.”

Ora, num país onde pensar-se pela própria cabeça é coisa estranha e originalidade se confunde com excentricidade, de que modo a tragédia do Meco se relaciona com estes factos? De modo, quanto a nós, directa e naturalmente. Directamente porque a ausência de escol se faz sentir nos mais diversos domínios da sociedade portuguesa: da política à economia, das escolas à Universidade, da administração dos bens públicos, ao modo como se faz televisão, ou se faz outro qualquer trabalho. Naturalmente, porque não há nada de mais natural que o “gosto da cobiça e da rudeza” num país onde a cultura parece projecto inviável... Já em outras ocasiões o dissemos: a nossa crise (que é sintoma da crise europeia) é, sobretudo, de natureza mental. Os sintomas da doença não cessam de nos chamar para a realidade urgente que temos de enfrentar, antes que Portugal soçobre na mais abjecta das existências. As instituições não estão imunes ao processo de decadência que nos aflige. Da Escola Pública, ao Sistema Nacional de Saúde, dos Tribunais, à Polícia, o que os portugueses sentem é que, 40 anos depois, Abril foi traído pelas classes dirigentes.

A tragédia do Meco é um dos mais claros sintomas de que Portugal, independentemente das gerações, está doente. No quotidiano vai imperando o ressentimento, a vulgaridade, a inveja, a incoerência, a mentira, a ganância, a superficialidade... tudo num melting pot potencialmente explosivo. Não haverá interesses de classe que possam muito contra um povo que, sucessivamente atraiçoado ao longo da sua história, veja como única saída, a violência urbana. Que existe já, indisfarçável. Pois bem: as praxes ilustram, para quem dúvidas tiver, o modo como essa violência se está consolidando e encontra livre curso na impunidade de que responsáveis - governantes e universitários – gozam neste país dominado por oligarquias partidárias e bancárias execráveis. O problema, falando de instituições, é que é a Universidade, no seu todo, que está em causa e, a jusante, o suposto escol que pudéssemos ter...

Lendo as declarações dos responsáveis pelas associações de estudantes é espantoso como podem continuar defendendo as praxes. Importadas de modelos fascizantes – que Mariano Gago denunciou e bem (“é uma regressão inadmissível, uma verdadeira educação para uma sociedade fascista: educar para a banalização da prática da violência física, psicológica, verbal, da humilhação e da violência sexual”, disse em entrevista ao Diário de Notícias) – só podemos compreender que tal seja defensável à luz do provincianismo que Eça e Pessoa identificaram em tempos e que redundou na ausência de escol. Defendem os praxistas que não se pode proibir o que – pasme-se ! – obrigam outros a fazer! João Santos, atento leitor do nosso sistema de ensino, não hesitou em apodar de fascista quem assim pensa e age. Tem a razão do seu lado e convém reler o seu artigo no Jornal de Letras (Suplemento de Educação) de 5 de Fevereiro.

A tragédia do Meco tem levado a que os pais queiram ver a verdade. Mas a verdade é, no limite, relativamente simples, apesar de condicionantes complexas. É o tecido social do país que está armadilhado por décadas de mau ensino e de más práticas. Estruturalmente (mentalmente) a liberdade ainda não se aprendeu em Portugal. A Inquisição, o centralismo burocrático, o absolutismo, um liberalismo de barões, como bem sentenciou Garrett nas suas Viagens e um bipartidarismo que, de 1974 até hoje, sedimentou na democracia a ambição política das jotas, leva a que se cultive a intriga, a inveja e se patrocine corporativismos vários. As praxes cabem nesta ideologia, sem mais. Veja-se a semelhança entre praxistas e juventudes partidárias: entoam cânticos à chegada dos seus líderes, lembrando claques de futebol, furiosamente ululantes. Na vida universitária é isso que se entende por “espírito académico”. A ideologia televisiva, a própria vida colectiva nas dimensões familiar e pessoal – tudo parece minado pelo idiotismo sorridente dos integrados. Umberto Eco poderia ser de boa leitura: quem ousa ser hoje apocalíptico? Quase ninguém: há que ser (e estar) integrado e participar da vida social com o denodo próprio de quem leu o manual do bom inquisidor.

Não me espanta – ainda que lamente a morte destes jovens universitários – a tragédia do Meco. Poderia ter sido durante um qualquer cerimonial numa qualquer escola secundária. À custa da deseducação a que temos votado os nossos jovens, criou-se em Portugal, como na Europa da austeridade, uma sub-cultura de entretenimento que tem como consequência achar-se que é cultura o boçal, o humor mais rasteiro. No afã de serem populares no seu grupo de amigos, na Universidade que frequentam, na escola onde estudam; na demanda absurda de darem um sentido à vida no meio do desconcerto em que tudo se transformou, as praxes, bem como outras práticas “integracionistas”, são um convite à morte, moral ou física, pois que é a própria energia vital o que esta sociedade nos está roubando. Às ordens “de um ou de uma qualquer idiota a fazer de chefe nazi” - palavras certeiras de Mariano Gago - como podem centenas de estudantes que ingressam no Ensino Superior vir a ser o escol, a elite que nos falta?

Não creio que possamos desligar as ideias de Pessoa e de Eça deste caso triste, o da praia do Meco. Morreram estudantes. Ao que parece, com pés atados, fosse porque se preparavam para um ritual de iniciação nas praxes, fosse porque queriam uma melhor integração, fosse por terem sido coagidos... Falta-nos, de facto, um escol para que possamos ver o nosso quadro civilizacional em toda a sua extensão. Em Setembro, com cânticos selváticos, com lugares-comuns sobre a defesa de uma suposta tradição académica, os “caloiros” lá descerão a Alameda da Universidade, lá se arrastarão ou irão rastejar a vil existência académica e os seus trajes negros… Talvez imitando novas práticas “mais benéficas” (a expressão é de Marcelo Fonseca, Presidente da Associação Académica de Lisboa), quem sabe se italianas (lembrando os camisas castanhas?), ou alemãs (evocando a juventude hitleriana?) os nossos alunos do Ensino Superior provoquem enorme orgulho nos pais. Esses pais que, traídos pelos políticos há décadas e vítimas dum país que sempre voltou as costas à cultura, nem imaginam que o seu filho ou filha são “dux”. Sejamos claros: fascistas. Carrascos que, tendo sido vítimas, descobrem na praxe a vingança perfeita.

Professor e crítico literário
 

   

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