Prémio à “cidadania fiscal” ainda sem grande impacto nos cafés e lojas

Sorteio que arranca em Abril com facturas de Janeiro não alterou hábitos dos contribuintes nas primeiras semanas de 2014, dizem comerciantes.

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Renato Cruz Santos

Sentado na mesa do café, José Manuel Ferreira guarda para si algum descanso nesta tarde de Inverno, agora que a azáfama do almoço terminou e a preparação para o derby Benfica-Sporting agita as mesas ao lado. Conversa agora sobre facturas e o que lhe dizem os clientes em relação ao sorteio do fisco que o Governo quer lançar em Abril? A resposta sai-lhe em poucas palavras: “Nada, zero, não há grande mudança de comportamento das pessoas”. Na Pastelaria Marques, no centro de Coimbra, o assunto tem passado despercebido ao balcão. Para “o tradicional pedido de café e bolo, quase ninguém pede facturas com o número de contribuinte; nos almoços, uma ou outra pessoa quer, mas a percentagem é muito baixa”, descreve Manuel Ferreira, um dos gerentes do estabelecimento.

O PÚBLICO percorreu nos últimos dias lojas do pequeno comércio, cafés, restaurantes, minimercados, grandes supermercados e outros serviços em quatro cidades — Coimbra, Lisboa, Faro e Quarteira — para medir o pulso à mobilização e à percepção pública da iniciativa que o executivo elegeu como uma das bandeiras do combate à economia paralela: um sorteio de facturas para recompensar a “cidadania fiscal” com prémios em espécie, neste caso, automóveis de “gama elevada”.

As impressões recolhidas nas quatro cidades são idênticas: embora os comerciantes notem que, desde o início do ano, há mais pessoas a pedir factura, os consumidores parecem estar divididos, sendo ainda poucos os que solicitam o comprovativo com o número de identificação fiscal (NIF). Mas, admitem os comerciantes, é ainda cedo para tirar ilações. Não só porque ainda não passaram dois meses desde o período em que as facturas emitidas contam para o concurso, mas também porque ainda não são claros todos os detalhes do sorteio, que apenas começa em Abril.

Por exemplo, no comércio percorrido no centro de Coimbra, e do contacto com os gerentes dos estabelecimentos, apenas um responsável de um supermercado da grande distribuição disse ao PÚBLICO notar um aumento de pedidos. Aqui, o valor gasto em compras é potencialmente maior. E quanto mais elevado for o montante acumulado em facturas, maior é o número de cupões sorteados.

O Ministério das Finanças ainda não tem dados disponíveis sobre o número de facturas do primeiro sorteio, porque os operadores do comércio e os prestadores de serviços têm até dia 25 de Fevereiro para comunicar à Autoridade Tributária e Aduaneira as facturas emitidas no mês anterior. Apenas olhando para as estatísticas mais recentes do Portal das Finanças é possível ter uma ideia da percentagem de facturas inseridas com NIF e comunicadas ao fisco pelas empresas de reparação de automóveis, motociclos, restauração e cabeleireiros. Estes são os quatro sectores abrangidos, desde 2013, pelo programa do e-factura, que permite aos contribuintes deduzir em sede de IRS 15% do IVA suportado nas compras ou nos serviços.

No ano passado, só 6,6% das facturas foram pedidas com NIF, o equivalente a um benefício fiscal de 18,9 milhões de euros. Este ano, os dados actualizados até esta quarta-feira davam conta de 8,2% de facturas emitidas com número de contribuinte nestes quatro sectores (3,7 milhões de facturas face a um total de 45,7 milhões).

“Big brother” fiscal
Com estes dois benefícios fiscais o Governo “incentiva os contribuintes a pedir e a comunicar as facturas à Autoridade Tributária”, mas, por outro lado, “‘asfixia-os com mais custos burocráticos e de contexto”, alerta a economista Cidália Lopes, especialista em comportamento fiscal no Instituto Superior de Contabilidade e Administração de Coimbra. Com a crise, acentua, “o contribuinte pode sentir que já é suficientemente penoso pagar impostos tão elevados, quanto mais exercer, de forma gratuita, actividade inspectiva por conta do Estado”.

As pessoas resguardam-se e temem perder a privacidade ao associarem o seu número de contribuinte a uma factura onde consta o serviço pelo qual pagaram, onde e a que horas. “As pessoas chamam a isto o big brother, dizem que não estão interessadas em que o Estado saiba o que fazem e não querem dar a vida a conhecer”, refere ainda José Manuel Ferreira. O mesmo diz Sara Ferreira, 65 anos, dona de um cabeleireiro no centro comercial Avenida, na mesma cidade: “Há muita gente que não quer factura com número de contribuinte, porque diz ‘o Estado não tem de saber!’ e às vezes são contas tão pequenas que as pessoas não ligam”.

Para o presidente da Associação Fiscal Portuguesa, o fiscalista Rogério Fernandes Ferreira, embora alguns contribuintes possam participar no sorteio “no seu próprio interesse pessoal” e “sem consciência da importância” do acto de pedir factura “a nível tributário”, a medida será benéfica no combate à economia paralela e na prevenção da evasão fiscal. O ex-secretário de Estado dos Assuntos Fiscais do último Governo de António Guterres considera, no entanto, que estas medidas “são, tais como a da divulgação dos devedores fiscais, muitas vezes incompatíveis com a maneira de estar mais tradicional dos cidadãos comuns”. E diz que há outros mecanismos “mais consensuais” — um deles seria a introdução de taxas de imposto “mais favoráveis para os contribuintes cumpridores”.

Para aumentar a “consciência fiscal”, completa Cidália Lopes, seria necessário apostar numa “estratégia de ‘educação fiscal’ de raiz, assente na formação cívica e tributária generalizada nas escolas”. Na Suécia, exemplifica, o sistema educativo está desde o primeiro minuto vocacionado para a formação da cidadania e há “ideias simples” de concretizar: não só o pagamento de impostos é um tema abordado na disciplina de formação cívica na escola primária, como há, por exemplo, o cuidado de o incluir na lista de deveres e direitos nos papéis que cobrem os tabuleiros dos refeitórios escolares. com Idálio Revez e Alexandra Guerreiro

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