“'Não sei', ‘não me consta’, ‘eu confiava no meu marido’”, respondeu a infanta Cristina

Durou seis horas e meia o interrogatório, o primeiro de sempre de algum membro directo da monarquia espanhola. A filha do rei de Espanha deixou muito por explicar sobre o seu envolvimento no Caso Nóos.

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A infanta na chegada ao tribunal de Palma de Maiorca Gerard Julien/AFP

Quando decidiu pedir para ouvir a infanta Cristina, defendendo existirem “indícios fundamentais da sua culpabilidade”, a 7 de Janeiro, o juiz José Castro disse que muito dificilmente a filha mais nova do rei de Espanha podia não saber “dos delitos contra as Finanças que se imputam” ao seu marido. Castro acusou-a de ter mantido “uma atitude própria de quem olha para o lado”. Este sábado, face às suas insistentes perguntas, a infanta confirmou precisamente essa atitude.

“Noventa e cinco por cento das respostas da infanta estão a ser ‘não sei’, ‘não me consta’, ‘eu confiava no meu marido”, disse aos jornalistas durante um dos intervalos da audiência Manuel Delgado, advogado da Frente Cívico, uma das organizações que se constituíram como assistentes no processo de instrução do chamado Caso Nóos

Durou seis horas e meia o interrogatório, o primeiro de sempre de algum membro directo da monarquia espanhola. “Dia intenso, insólito e histórico”, escreveu o jornal El País. A infanta chegou a sorrir e disse “bom dia”, depois de percorrer de carro o caminho até à entrada do tribunal de Palma de Maiorca. Antes, terá ouvido os gritos das poucas centenas de manifestantes que se juntaram numa rua próxima: a maioria anti-monárquicos com bandeiras republicanas e cartazes de apoio ao juiz.

À saída, Cristina despediu-se com um “até logo, obrigada” difícil de ouvir, enquanto o juiz disse que não iria fazer declarações. Miquel Roca, advogado da infanta, descreveu o interrogatório como “leal” e “cordial”. “Responder sim ou não não é responder com evasivas, é dar respostas taxativas”, defendeu Jesús Silva, outro dos seus advogados. “Agora, a partir de segunda-feira, agradecemos que nos deixem viver mais tranquilos”, acrescentou Roca, em tom de brincadeira.

Tanto a associação de esquerda Frente Cívico como o sindicato de direita Mãos Limpas, outros dos assistentes do processo, fizeram avaliações bem diferentes. “A infanta apoiou-se na teoria do amor, assinava tudo o que o marido lhe dava”, disse a advogada do Mãos Limpas, Virginia Negrete. “As provas documentais são tantas que estas declarações não mudaram nada a minha opinião”, acrescentou. Para Negrete, “a situação da infanta Cristina é pior agora do que de manhã”.

Direito a não dizer verdades

Delgado, da Frente Cívico, e Negrete, foram os únicos presentes na sala que falaram aos jornalistas nos intervalos, insistindo sempre na fuga da infanta às perguntas e dizendo-a tranquila, ao mesmo tempo que elogiavam o rigor e a minúcia do interrogatório conduzido por Castro. “Entendo o seu direito a não dizer verdades que a comprometam… está a exercer plenamente esse direito”, comentou Delgado.

O desconhecimento e a confiança que tinha no marido, Iñaki Urdangarín, foram então os pontos-chave das declarações da infanta. Segundo os dois advogados da acusação popular e fontes citadas pela agência Europa Press, Cristina disse nada saber das actividades da Aizoon, a sociedade patrimonial do casal onde foi parar parte do dinheiro obtido pelo Instituto Nóos. Castro recordou-lhe que era proprietária de 50% da Aizoon. “O meu marido aconselhou-me a assumir esses 50% e eu confiava no seu bom senso”, respondeu a filha de Juan Carlos.

Urdangarín é suspeito de ter desviado 5,8 milhões de euros a meias com o seu sócio no Nóos, Diego Torres. Apesar de ser uma fundação desportiva sem fins lucrativos, o Nóos, fundado em 2003 por Urdangarín, que o geria, celebrou contratos com municípios cobrando serviços que não realizava e passando facturas falsas.

Despesas pessoais

Parte do dinheiro assim desviado foi transferido para a Aizoon. Esta sociedade, por sua vez, estava domiciliada na casa da família e através dela foram pagos vários gastos pessoais do casal: livros, viagens, cursos de dança da infanta ou as obras de remodelação do palacete de Pedralbes, em Barcelona, a propriedade de mil metros quadrados que o casal comprou em 2004 por seis milhões de euros. Cristina usou um cartão de crédito da Aizoon durante anos.

Face às dezenas de facturas que o juiz lhe mostrou, Cristina respondeu que não se lembrava de muitas dessas despesas, admitindo outras. Sobre a morada da Aizoon disse não saber por que razão era a mesma onde vivia com a família, insistindo sempre que era o marido que se ocupava de todos os negócios. Taxativa foi ao negar pagamentos sem facturas aos empregados da sua casa: alguns já disseram que passaram anos a receber ilegalmente enquanto estiveram em Espanha em situação irregular; só quando os próprios quiseram legalizar a sua situação é que lhes fizeram contratos… na Aizoon.

Fontes citadas pela Europa Press dizem que os únicos momentos em que Cristina “pareceu desabar” foram aqueles em que o pai surgiu nas perguntas. O juiz falou-lhe, por exemplo, do empréstimo de 1,2 milhões que Juan Carlos fez à filha para a compra do palacete. A infanta respondeu que agora tem mais dificuldades em pagar, mas que continua a devolver o dinheiro, contando com a paciência do rei. “Afinal, é meu pai”, disse.

Ainda não foi este sábado que se ficou a saber se Cristina ou Urdangarín serão formalmente acusados no processo que o chefe da casa real já descreveu como “um martírio” para a monarquia. As sondagens mostram que os espanhóis condenam a gestão que a família real tem feito do caso e que não acreditam na inocência nem de Urdangarín nem da infanta. Ainda não há acusações mas já há consequências.

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